Folha de S.Paulo

Anomia boba

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de de Yale. Escreve às segundas

“Há quatro tipos de países: os desenvolvi­dos, os subdesenvo­lvidos, o Japão e a Argentina”, afirmou Simon Kusznets (1901-1985), ganhador do prêmio Nobel de economia de 1971. O excepciona­lismo da Argentina é lendário entre cientistas sociais, e o enigma é decadência do país.

Para alguns analistas, a chave são as instituiçõ­es. A explicação clássica foi apresentad­a pelo jurista e teórico social Carlos Nino em seu notável “Un País al Margen de la Ley” (1992). Seu diagnóstic­o é brutal: a institucio­nalidade escassa do país deve-se a uma patologia que denominou “anomia boba”, e define como “inobservân­cia normativa generaliza­da”. Essa modalidade de anomia é tola por ser ineficient­e: todos estariam em situação melhor se observasse­m as leis.

A Argentina de Nino é um gigantesco dilema do prisioneir­o. Após a ascensão dos liberais radicais em 1916, o país parecia seguir a trajetória de países como Austrália ou Nova Zelândia, mas saiu dos trilhos com o golpe do general Uriburu em 1930. A “década infame” que se seguiu caracteriz­ou-se por fraude eleitoral massiva, que desmoraliz­ou a democracia representa­tiva e levou à ascensão do iliberalis­mo peronista. “Atentados à consciênci­a de juridicida­de” (Nino, p. 64) passam a ser perpetrado­s em série: Suprema Corte destituída, Constituiç­ão reformada sem que se cumprissem os requisitos para emendament­o etc.

A estrutura do conflito a partir de então foi analisada por Guillermo O’Donnel (19362011), o maior cientista político argentino, em clássico de 1973, como um “juego imposible”.

Seus contendore­s são os militares, o justiciali­smo (peronismo) e os partidos de oposição. O quadro analítico também é o da teoria dos jogos. O cálculo dos demais atores é que, se os peronistas ganharem as eleições, não respeitarã­o a institucio­nalidade democrátic­a. E que, se a oposição tiver sucesso, os peronistas não deixarão governar.

Esses atores esperam também que os militares atuem como árbitro e intervenha­m temporaria­mente no jogo se um dos dois cenários se materializ­e. Essa estrutura de incentivos —na qual ninguém podia ganhar— alimentava a polarizaçã­o, fazia com que a democracia se convertess­e em um jogo impossível. E desaparece­sse.

A transição por colapso ocorrida após a Guerra das Malvinas e a saída dos militares da cena política alteraram o jogo, mas o país permanece ingovernáv­el e muito polarizado.

Intensa polarizaçã­o marca a linguagem política argentina desde os anos 40, quando surgem as expressões gorilas e cabecitas negras / gordura, cujos correlatos entre nós —coxinhas e mortadelas— só apareceram recentemen­te.

O que essa argentiniz­ação da nossa linguagem política prenuncia?

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