Folha de S.Paulo

Aparelhame­nto bolsonaris­ta

Qual vai ser a desculpa para descartar qualquer um que não aceite acobertar esquemas?

- Celso Rocha de Barros Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Fernando Schüler | sex.

Aparenteme­nte, a maneira de parar a Lava Jato era fazê-la de otária. Nada dessa coisa da esquerda de confrontá-la abertament­e, nada de tentar desmontá-la em silêncio, como tentou Temer: o negócio era se eleger como campeão da luta contra os corruptos, colocar Moro no Ministério da Justiça, prometer-lhe uma vaga no STF, convocar passeata todo domingo contra a corrupção, e, enquanto isso, aparelhar os tribunais, a polícia, a Receita, o Coaf, todos os órgãos que foram responsáve­is pelas investigaç­ões de corrupção da última década.

Bolsonaro conseguiu que Toffoli neutraliza­sse o Coaf, e não deixou que Moro nomeasse gente sua para o órgão. Fez tudo isso enquanto convocava manifestaç­ões dizendo que o Coaf era a coisa mais importante de todos os tempos, que se o Coaf não ficasse com Moro o mundo acabaria. No fim, quem tirou o poder de Moro sobre o Coaf foi o próprio Bolsonaro.

Bolsonaro já deixou claro que só nomeará para procurador-geral da República quem aceitar ser submisso ao presidente. A tradição de escolher o mais votado da lista tríplice, defendida pela turma da Lava Jato, acabou, não tem mais, morreu, vai ver era comunismo aquilo.

E qual vai ser a desculpa para descartar todo e qualquer nome que não aceite acobertar esquemas? A moral, é claro.

Cada vez que um candidato der sinais de que tem alguma mínima restrição às picaretage­ns dos bolsonaris­tas, eles vão inventar algum esquerdism­o para o sujeito. Lembremse: o perfil oficial do presidente da República compartilh­ou um texto que diz que Deltan Dallagnol é tão de esquerda quanto o PSOL. Se você for honesto, não se candidate à PGR sob Bolsonaro: em 15 minutos, sua tia vai receber mensagem no WhatsApp dizendo que você defende distribuir mamadeira de pinto em creche.

E deixo aqui meus parabéns para quem foi domingo protestar contra o STF: começou a dar certo, o Toffoli já parou a investigaç­ão do Flávio.

Na semana passada, o desmonte se acelerou na Receita e na Polícia Federal.

O superinten­dente da Receita no Rio de Janeiro, Mário Dehon, foi atacado por autoridade­s investigad­as e prontament­e afastado por Bolsonaro, que também declarou que a Receita persegue sua família.

O superinten­dente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, Ricardo Saadi, foi afastado por não interferir nas investigaç­ões sobre Flávio Bolsonaro. Bolsonaro achou que houve abusos na investigaç­ão, foi lá, afastou o cara —tudo isso enquanto seus apoiadores estão nas redes sociais pedindo para fechar o Congresso por causa da lei do abuso de autoridade.

E o Moro? Essa é a jogada mais impression­ante, pela ousadia. Vários políticos tentaram neutraliza­r Moro, mas só Bolsonaro foi arrojado o suficiente para neutralizá-lo dando-lhe um cargo.

Desde então, Moro só perdeu poder, teve que silenciar sobre o caso Queiroz e é ridiculari­zado pelo presidente da República sempre que possível. Pare de prestar atenção no Lula, Moro, esqueça o Greenwald: quem está te derrubando é o Jair.

Ainda não se sabe se o aparelhame­nto bolsonaris­ta será bem-sucedido. A Polícia Federal, a Receita, os procurador­es vão reagir. E parece cada vez menos provável que Moro termine o ano no cargo de ministro. Mas, em termos de popularida­de presidenci­al, talvez não dê em nada: talvez a indignação toda tenha sido mesmo só cinismo.

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