Folha de S.Paulo

Extravagan­te, ditador faz do Turcomenis­tão bolha autoritári­a

Líder ficou sumido por semanas, mas episódio não foi questionad­o em país tão fechado quanto a Coreia do Norte

- Anna Virginia Balloussie­r

É possível sumir por longas temporadas no Turcomenis­tão, a ponto de muitos questionar­em se você está morto. Aconteceu recentemen­te com o ditador desta costela da antiga União Soviética na Ásia Central.

Quem é vivo sempre aparece, e Gurbanguly Berdymukha­medov, 62, pôs fim aos rumores sobre sua morte dando as caras num fórum econômico local no último dia 12.

Já haviam se passado semanas desde a última vez que dera sinal de vida, em situação similar ao colega nigeriano: em 2018, Muhammadu Buhari teve que desmentir boatos de que teria batido as botas e sido substituíd­o por um clone.

Antes de selar quaisquer dúvidassob­res eu estado de saúde no encontro oficial, o turcomeno tentou provar sua existência de uma maneira peculiar.

Rachel Denber, que coordena a divisão europeia e centralasi­ática da ONG Human Rights Watch, destaca tamanha excentrici­dade: “O Turcomenis­tão é tão fechado, e todas as informaçõe­s são tão rigidament­e controlada­s, que não havia como verificar esses rumores [sobre a morte presidenci­al]”.

“Aforma parano ica do governo para afastá-los: vídeos antigos, em que aparece jogando boliche e até mesmo um no qual acreditamo­s que está dirigindo, em tempo real, em torno de uma cratera flamejante no deserto.”

Para quem gosta de tirar sarro de um mandatário caricato, o turcomeno é um barato. Ele era o dentista de seu antecessor no cargo, que o chamou para ministro da Saúde antes de morrer, em 2006.

O atual ditador gosta de compartilh­ar vídeos musicais com estéticas do século passado. A estrela de todos: o próprio.

Há um clipe em que ele, de boné vermelho, camisa social idem e óculos escuros, canta um rap sobre o país natal.

Em outro, dedilha uma guitarra, mas não dá para saber se ele toca mesmo: uma nuvem de fumaça estilo pista de dança dos anos 1990 invade o cenário.

Como o russo Vladimir Putin, é afeito a cavalgar em público. Só que a paixão por cavalos, em seu caso, beira a obsessão. Vários móveis de seu gabinete têm motivos equinos, o que inclui um trono com dois garanhões no topo.

Em 2013, caiu do cavalo, literalmen­te, num evento público. Mas boa parte da população de seu país nunca ficou sabendo disso, porque aparte da queda foi cortada na edição.

E isso explica por que a Human Rights Watch e outras organizaçõ­es que lutam por direitos humanos se interessam tanto por esta nação de quase 6 milhões de habitantes (um pouco mais populosa que a Dinamarca), PIB de US$ 42 bilhões (maior que o da Bolívia) eque preserva a fama de sera Corei ado Norte sobre a qual ninguém está falando a respeito.

É possível sumir por longas temporadas no Turcomenis­tão, aponto de muitos questionar­emse você está morto. Só que, ao contrário do ditador, as histórias desses outros desapareci­dosnão são nada engraçadas.

Ativistas estimam que haja ao menos uma centena de pessoas detidas pelo governo de forma zero transparen­te. Visitas? Ligações? Direito a um advogado? Esquece. Em alguns casos, as famílias dos presos não têm notícia deles há mais de uma década.

O Freedom in the World, relatório anual que mede liberdades civis e direitos políticos em 195 países, conferiu ao Turcomenis­tão pontuação de 2/100. Uma base de comparação: a Coreia do Norte tem três pontos, e a Venezuela, 19.

O levantamen­to aponta que candidatos governista­s ocupam todo o Parlamento eque autoridade­s impedem o direito dei revir( sobretudo homens jovens, que são barrados de viajar para o exterior ).

O ditador, no poder desde 2007, costuma ganhar eleições com 98% dos votos. A situação econômica vai de mala pior: em junho de 2018, a inflação chegou a 294%, e produtos básicos como ovo e açúcar rareavam.

“O Turcomenis­tão é um Estado repressivo e autoritári­o onde [...] a economia é dominada pelo Estado, a corrupção é sistêmica, grupos religiosos são perseguido­s, e dissenso político não é tolerado”, resume o Freedom in the World.

É esse o país que virou piada e tema de programas como o talk show na HBO do humorista John Oliver. Tudo devido ao sumiço de seu líder.

“As pessoas estão acostumada­s a vê-lo todos os dias na TV. O presidente canta rap, o presidente está escrevendo um livro, o presidente cavalga, o presidente atira com precisão, o presidente em meio a novos edifícios de mármore”, diz o ativista Farid Tukhbatull­in.

A arquitetur­a em mármore é um afixação de Berdymukha­medov, que fez da capitaln acional, Achkhabad, acidade com maior concentraç­ão de mármore branco do mundo.

“E, de repente, não há presidente”, continua Tukhbatull­in, que dirige na Áustria a ONG Iniciativa Turcomena.

Não há mídia independen­te baseada no Turcomenis­tão, só a estatal, que está proibida de usar apalavra“problema ”, segundo o dissidente.

“O absurdo do sistema turcomeno é que toda opinião c rí ticaéenc arada como traiçãoàpá­t ria .”

Estrangeir­os conseguire­m visto para visitar o país é missão quase impossível, daí a sensação de viver numa bolha.

“Infelizmen­te, as organizaçõ­es internacio­nais não são capazes de ter um impacto significat­ivo na situação dos direitos humanos no país. Ela continua muito deplorável”, diz Tukhbatull­in. “E o mundo está rindo do nosso presidente.”

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Igor Sasin - 28.abr.18/AFP O ditador Gurbanguly Berdymukha­medov participa de cerimônia durante o Dia do Cavalo, feriado criado por ele, que é obcecado pelo animal
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