Folha de S.Paulo

Itabira tem maior simulado de rompimento de barragem

Berço da Vale, cidade de Drummond registrou apenas 40% da adesão prevista

- Fernanda Canofre Fernanda Canofre/Folhapress

Se a história do Brasil fosse uma enciclopéd­ia, dois dos verbetes mais importante­s do século 20 teriam origem em Itabira. O poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em 1902, veio primeiro. Mas foi também ali que surgiu a Companhia Vale do Rio Doce, criada pelo governo Getúlio Vargas em 1942, e que tirou as primeiras pedras por explosão do pico do Cauê dois anos depois.

As poesias mais famosas do itabirano Drummond falam da sua relação com a cidade, a cerca de 107 km de Belo Horizonte, e fazem críticas à mineração que virou sina dela. Hoje, Itabira é mais o que surgiu depois da Vale —uma das maiores mineradora­s do mundo— do que as casas do século 19 e a paisagem na qual o poeta cresceu.

No sábado (17), dia dos 32 anos da morte de Drummond, a cidade de 110 mil habitantes passou pelo primeiro simulado de fuga para caso de rompimento de barragens de sua história. A estimativa da Defesa Civil de Minas Gerais era de que 19 mil pessoas participas­sem, mas a taxa ficou em torno de 40% disso.

Foi o nono simulado realizado pelo órgão no estado desde o rompimento da barragem em Brumadinho, em janeiro, que deixou 248 mortos e 22 desapareci­dos. O maior até então tinha sido realizado em Itabirito (MG), em março, reunindo 4.770 pessoas. Os testes servem para orientar moradores em áreas de risco para onde se dirigir e em quanto tempo devem deixar as casas em caso de rompimento.

Morando há mais de 40 anos na área baixa que está dentro da mancha de inundação, Eloísa Cristina Ferreira, 46, conta que nunca se preocupou com as estruturas da Vale, porque acreditou que estava segura.

“Quis fazer o teste hoje porque vai que no dia que romper, minhas irmãs não estejam em casa. Queria calcular o tempo em que chegaria sozinha aqui em cima, [ponto de encontro]”, diz ela, deficiente visual. A irmã Cleonice Ferreira, 49, e a vizinha Maria Luiza, 61, a acompanhar­am.

Outro vizinho delas, Antônio Aparecido de Oliveira, 48, subiu para o ginásio que serviu como um dos pontos de encontro, carregando o pato de estimação, Doralice, debaixo do braço. O nome feminino tem uma explicação. Antônio descobriu que o animal de seis anos era macho com ele já adulto, e resolveu manter o nome mesmo assim.

Ele conta que, como já fez várias cirurgias no joelho, seu medo é não conseguir correr ou caminhar rápido o suficiente em uma emergência. “A gente pensa sempre em estar seguro. É preocupant­e, né?”.

Equipes da mineradora fizeram abordagem em 8.000 imóveis para alertar sobre o simulado e fazer levantamen­to de pessoas com animais e ou com dificuldad­e de locomoção. Apenas 60 não quiseram receber a empresa.

Itabira não tem estruturas em níveis de risco 2 ou 3, que obrigariam a remoção dos moradores de áreas mais próximas. No final de julho, a empresa precisou parar as obras de alteamento a jusante na barragem de Itabiruçu —que tem cerca de 130 milhões de metros cúbicos de rejeito— após identifica­r mudanças no terreno. Os trabalhos foram retomados neste mês.

A Promotoria propôs quatro ações civis públicas relacionad­as às barragens da Vale na cidade. Dois termos de ajuste de conduta foram assinados, prevendo a contrataçã­o de auditoria externa independen­te para acompanhar as estruturas da mineradora.

Diferente dos simulados em outras cidades, o de Itabira não calculou os riscos de apenas uma estrutura. A Defesa Civil criou uma super-mancha, sobrepondo as manchas de inundação previstas para caso de rompimento em seis das 15 barragens que a Vale tem na cidade, cadastrada­s na Agência Nacional de Mineração (ANM)

Cinco delas —três de rejeitos e duas de sedimentos— receberam Declaração de Condição de Estabilida­de) em março deste ano, seguindo as normas editadas pela ANM depois de Brumadinho. A exceção foi o Dique 2 do sistema Pontal.

A liminar da Justiça que determinou que a Vale parasse de lançar rejeitos nos dois diques do sistema Pontal cita a Tüv Süd, empresa que atestou a estabilida­de, sinalizand­o as barragens como “fonte particular de preocupaçã­o”. Em abril, a Vale acionou o nível de risco 1—indica estado de prontidão, mas sob controle.

A casa de Délcio das Graças Silveira, 70, está em um dos pontos críticos, próximo aos rejeitos de Pontal. Ele conta que quando se mudou para lá, a região era arborizada e tinha um córrego. Em seguida, nos anos 1970, a Vale instalou ali a estrutura com rejeitos. O pó do minério cinza, diz ele, invade a casa onde vive com a esposa, a filha e netos.

“Eu mandei uma carta propondo a venda do imóvel, mas não me respondera­m”, conta Délcio. “Eu defendo a Vale, porque se não fosse a Vale, como Itabira ia sobreviver? A cidade depende da Vale. Se a Vale sair daqui, a cidade vai ser, como diz o poeta, só um retrato na parede”.

O sentimento contraditó­rio sobre a empresa parece ser o da maioria dos habitantes de Itabira. As minas da Vale no município empregam mais de 7.400 funcionári­os próprios e terceiriza­dos.

“Itabira tem que cortar o cordão umbilical entre comunidade e Vale. Tem que andar com as próprias pernas, criando outros recursos para que a cidade tenha outras arrecadaçõ­es. Já estamos com previsão de só mais oito ou dez anos de mineração”, diz Walde Andrade, 59, primo em terceiro grau de Drummond.

“Itabira tem que cortar o cordão umbilical entre comunidade e Vale. Tem que andar com as próprias pernas, criando outros recursos para que a cidade tenha outras arrecadaçõ­es. Já estamos com previsão de só mais oito ou dez anos de mineração

Walde Andrade, 59 primo em terceiro grau e Drummond

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Antônio Aparecido de Oliveira segura o pato de estimação Doralice

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