Folha de S.Paulo

Médicos brasileiro­s prescrevem livros, vídeos e exercícios para tratar doenças

Para especialis­tas, medicament­os podem ter resultados modestos; prática ainda é nova no país

- Cláudia Collucci Danilo Verpa/Folhapress

Médicos brasileiro­s estão adotando intervençõ­es que associam a prática clínica tradiciona­l com indicações de livros, atividades físicas e lúdicas para aliviar quadros de tristeza, ansiedade, insônia e até demência.

Conhecida internacio­nalmente como “prescrição social”, a prática já vem sendo adotada em serviços de saúde da Inglaterra, Austrália e Escandináv­ia. No Brasil, há iniciativa­s isoladas de profission­ais.

A prescrição social se baseia no fato de que muitos pacientes têm fragilidad­es e condições que afetam a saúde mas que não respondem totalmente às abordagens clássicas, como a prescrição de remédios.

Nesses casos, estudos têm demonstrad­o que o encaminham­ento a grupos comunitári­os, por exemplo, podem promover melhorias no bemestar físico e mental, reduzir isolamento social e uso dos serviços de saúde.

Nas redes de atenção primária do sistema de saúde inglês (NHS), a prescrição social já faz parte de um programa público que pretende atender 1 milhão de pessoas até 2023.

No início deste ano, a médica de família Julia Rocha, de Belo Horizonte (MG), prescreveu como tratamento complement­ar a um paciente deprimido a leitura de obras de escritoras como Djamila Ribeiro, autora de “O Que É Lugar de Fala” e “Quem Tem Medo do Feminismo Negro”, e vídeos dos youtubers negros Spartakus Santiago e AD Junior.

O paciente, um jovem negro, evangélico e gay, carregava muita culpa ligada à sexualidad­e. Mesmo usando antidepres­sivos e com apoio psiquiátri­co e psicológic­o, tinha tentado o suicídio dois meses antes por “não conseguir corrigir a sua sexualidad­e”.

Com a prescrição inusitada na folha de receituári­o, a médica diz que a intenção era propor ao jovem um novo olhar sobre a homossexua­lidade e a negritude.

No encontro seguinte, ela conta que o paciente já tinha repassado a “receita” a amigos e que estava namorando.

Segundo ela, as prescriçõe­s sociais são únicas e muito específica­s. Como trabalha no SUS, com uma população muito pobre, pessoas analfabeta­s e sem acesso à internet, muitas vezes as encaminha a grupos na comunidade. Em um deles, aprendem crochê e artes em tecido. “Idosas e idosos entristeci­dos, sozinhos, melhoraram muito.”

O geriatra José Carlos Velho, de São Paulo, adota a prescrição social até em casos leves de demências em que, segundo ele, os remédios são escassos e os resultados modestos.

Para estimular pacientes com dificuldad­es cognitivas, ele recomenda fazer compras em feiras livres. “A pessoa precisa planejar a compra, caminhar, escolher produtos, pagar. Isso leva às interações sociais. A feira é um lugar de estímulos visuais, sonoros, gustativos e olfativos.”

A prescrição, no entanto, não serve para todos. “Pessoas que nunca fizeram feira ou que podem ficar mais inquietas com multidão e agitação provavelme­nte não vão se adaptar”, observa Velho.

Adepto do tai chi chuan, o geriatra também recomenda a prática aos pacientes, embora reconheça que a aderência não seja grande. “A aderência talvez seja uma dos grandes problemas dessas abordagens, pois elas só fazem sentido e trazem benefícios a longo prazo e com persistênc­ia.”

O dramaturgo Sergio Roveri, 58, foi um dos pacientes que aderiu à pratica desde outubro passado. Diz que conseguiu reduzir a ansiedade, dormir melhor e manter o corpo mais alongado. “O tai chi trabalha a postura, o equilíbrio e a respiração. E tem os simbolismo­s. As posturas de desvio do golpe, por exemplo, nos ensinam a desviar dos problemas, não deixar que as coisas nos atinjam.”

Para o Rodrigo Lima, um dos diretores da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, a prescrição social demanda bom vínculo com o paciente e abertura para sugestões que fogem à prática clínica tradiciona­l.

“Costumo indicar livros para pacientes com depressão e ansiedade, que são condições para as quais os medicament­os só aliviam os sintomas. O que resolve o problema é a pessoa trabalhar questões internamen­te. Quando conheço livros que podem trazer uma reflexão para o paciente, por que não indicar?”

Recentemen­te, ele prescreveu “O Demônio do Meio Dia”, de Andrew Solomon, e “Sidarta”, de Hermann Hesse, para uma paciente com depressão.

Para a psiquiatra e médica de família Michelle Barbosa, as indicações de livro podem funcionar quando o paciente tem bagagem cultural que permita fazer reflexões necessária­s para a sua própria história.

Em situações de luto, ela já indicou “Sermões de QuartaFeir­a de Cinzas”, do padre Antonio Vieira (1608-1697). “São três sermões lindos que tratam da importânci­a da morte na vida humana.”

Para adolescent­es, ela recomenda “A Sutil Arte de Ligar o F*da-Se: Uma estratégia inusitada para uma vida melhor” (Mark Manson). “Eles dão elementos para trabalhar o que é dor, sofrimento, o que é fato e o que é manejo pessoal. Os pacientes marcam os trechos do livro que mais os incomodam e a gente discute na consulta seguinte. É uma provocação mais suave.”

A “Arte da Guerra” (Sun Tzu) é sugestão para lidar com os problemas do dia a dia de forma mais prática. “É um bom recurso psicoterap­êutico para as consultas de curta duração que eu faço no SUS.”

Uma revisão recente publicada no BMJ (British Medical Journal) diz que a evidência atual ainda é insuficien­te para fornecer uma orientação definitiva sobre quais intervençõ­es ligadas à prescrição social realmente funcionam e como isso ocorre.

Segundo os autores, muitas das avaliações sobre a prática são de pequena escala e faltam medidas padronizad­as de resultados para que seja possível avaliar a real eficácia.

Para atuar nas lacunas da evidência, eles sugerem que os programas tenham claros os impactos pretendido­s e os mecanismos que serão usados para alcançá-los.

O NHS inglês, por exemplo, está medindo os resultados nas pessoas (ela se tornou mais capaz de gerenciar seus próprios cuidados?) e no sistema de saúde (como mudanças no número de consultas médicas ou de idas a hospitais).

Na opinião do médico Gustavo Gusso, professor de clínica médica da USP, no Brasil essa função de prescrição social ficou meio perdida entre os integrante­s das equipe de saúde da família e comunidade.

“No SUS, em áreas mais bem estruturad­as, as equipes têm assistente social, psicólogo, mas não fica muito claro de quem é esse papel [de prescritor social]. Muitos médicos têm a expectativ­a de que seja da assistente social, mas ele próprio poderia fazer isso.”

Para Gusso, o que precisa é um treino maior, com protocolos bem definidos e medição de resultados como qualquer outra prescrição médica.

“Nas equipes de saúde da USP, temos muito claro quais os equipament­os sociais próximos que podem colaborar, como igrejas que oferecem atividades físicas e lúdicas. Mas não está organizado, protocolad­o. E não é tão claro que a prescrição social possa ser uma atribuição do profission­al médico também”, diz.

“Costumo indicar livros para pacientes com depressão e ansiedade, que são condições para as quais os medicament­os só aliviam os sintomas. O que resolve o problema é a pessoa trabalhar questões internamen­te. Quando conheço livros que podem trazer uma reflexão para o paciente, por que não indicar?

Rodrigo Lima diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

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O dramaturgo Sergio Roveri, 58, faz aulas de tai chi chuan para melhorar o sono, manter o corpo alongado e reduzir a ansiedade

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