Folha de S.Paulo

Exposição de Grada Kilomba poderia dialogar mais com o resto do acervo da Pinacoteca

- Marcos Pedro Rosa

ARTES PLÁSTICAS

Grada Kilomba: Desobediên­cias Poéticas ★★★★☆

Pinacoteca - Praça da Luz, 2,

Até 30/9. Visitas de qua. a seg., das 10h às 17h30. Ingr.: de R$ 5 e R$ 10; grátis aos sábados

Grada Kilomba é artista, professora, escritora e psicanalis­ta. Negra de origem portuguesa, ela reside na Alemanha.

Suas obras poderiam estar em qualquer lugar com pouca ou nenhuma perda de sentido —e onde estivessem, seriam imprescind­íveis, mas estão na Pinacoteca, museu paulistano responsáve­l por narrar a história da arte brasileira.

No percurso entre uma obra e outra, atravessa-se o acervo, mas não se depreende nenhuma razão para que determinad­a instalação de Kilomba figure especifica­mente próxima aos artistas viajantes ou às obras acadêmicas, ainda que, de acordo com o catálogo da mostra, elas tenham sido selecionad­as para justamente estar em diálogo com o acervo do museu.

Há duas instalaçõe­s em que a artista interpela o público diretament­e. Em uma, ela aparece narrando a história de Édipo; na outra, a de Narciso e Eco. Mitos gregos canônicos, entre outros motivos, por ilustrarem as teses freudianas sobre a psique humana.

Os vídeos passam em fundo infinito branco, nos quais uma companhia de atores negros performa as personagen­s dessas tragédias, como outrora fizeram as esculturas embranquec­idas da Grécia.

As narrativas de Kilomba são traiçoeira­s e aumentam um ponto nessas lendas pretensame­nte universais. Se o clássico é um local de partida, a artista evidencia os vazios: a presença negra e a violência colonial, que os narradores brancos negaram ou esconderam, mas que são constituti­vos desses mitos.

Kilomba abre e fecha um dos vídeos anunciando que “tudo já foi dito” e que “não há nada de novo” para se dizer. A artista, como a ninfa Eco, sente que vive num espaço em que o passado interrompe o presente e no qual o presente é vivenciado como se ela estivesse já no passado —não à toa, a artista chama o espaço desses vídeos de “cubo branco”, metáfora comum para se referir a museus.

Tal uso dos cânones ocidentais é parecido com o uso da geometria pelos artistas negros brasileiro­s. Se Freud e Sófocles são símbolos do desenvolvi­mento da psique ocidental, a geometria sintetiza, na nossa história da arte, a ideia de projeto nacional moderno —tão entusiasti­camente abraçado pela arte na década de 1950. Jayme Lauriano, em “Experiênci­a Concreta #1”, justapõe uma ilustração da fita de Moebius, famosa no Brasil por inspirar os artistas concretist­as, com imagens de corpos negros amarrados. Rosana Paulino, na série “A Geometria Brasileira” chega ao paraíso tropical, junta retângulos coloridos com ilustraçõe­s cientifica­s e de viajantes a respeito de animais, de plantas e de negros brasileiro­s.

O cânone ocidental da obra de Kilomba, aquilo que se encontra nos museus, indica a vontade de interferir no centro da produção simbólica, o mundo da arte ou da academia. As referência­s locais, das obras dos brasileiro­s, indicam a vontade de interferir num projeto nacional específico.

Kilomba parte do pressupost­o de que suas histórias são, há muito tempo, conhecidas e no Brasil luta-se para que o acesso, mesmo que contemplat­ivo, à cultura erudita não seja um mecanismo de desigualda­de social e racial.

E, se para ela, o museu é um lócus de reflexão, para os brasileiro­s existe outro espaço tão ou mais importante: o Estado com sua violência, seus policiais militares e os projetos elitistas e eugênicos que os atravessa.

No horizonte de todos esses artistas está a vontade de se apropriar dos mundos da arte e evidenciar os vazios que os sustentam. Há também a reflexão sobre o papel do artista negro frente à sociedade branca e patriarcal, que, como Narciso, é incapaz de reconhecer o diferente como objeto de amor. Contrapor Kilomba às obras que brotaram da história da arte brasileira seria um experiment­o rico, mas isto, infelizmen­te, a Pinacoteca não nos proporcion­a.

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Divulgação Desenho sem título, feito em nanquim em 1955, de Flávio de Carvalho

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