Folha de S.Paulo

O bebê e a água

Sobre conflito de Bolsonaro com órgãos de controle.

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Agências incumbidas de fiscalizar o cumpriment­o das leis e de inibir nos poderosos a tendência ao abuso de suas prerrogati­vas atravessam um período crítico no Brasil. Tornaram-se alvo de questionam­ento e pressão motivados por um misto de boas e más intenções.

No centro do debate, o Ministério Público, a Polícia Federal, a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeira­s (Coaf ) passaram por notável processo de profission­alização e modernizaç­ão nas últimas décadas e têm exercido protagonis­mo no cerco aos crimes de colarinho branco.

A ascensão dessas burocracia­s não ocorreu sem custos. Fortaleceu-se nelas o corporativ­ismo, que amiúde se expressa como autoproteç­ão excessiva, ensimesmam­ento e repulsa à autocrític­a. A margem e a tentação para cometer abusos em procedimen­tos investigat­ivos também parecem ter crescido.

A agenda de ajustes sensata para essas agências pauta-se, portanto, na diretriz de mitigar danos colaterais do seu soerguimen­to sem ferilas na capacidade de investigar com autonomia e eficácia. Trata-se, em termos coloquiais, de não jogar a criança fora com a água do banho.

Enquadra-se nesse esforço bem intenciona­do de dar mais equilíbrio à atuação das instituiçõ­es fiscalizad­oras a discussão em curso sobre a lei de abuso de autoridade.

Também nessa linha, amadurece em Brasília o debate sobre uma reforma da Receita Federal que, além de esclarecer os seus protocolos de vigilância e autuação, diminua a brutal incerteza que a movimentaç­ão errática e ubíqua da máquina do fisco federal impõe sobre os negócios e os empregos no Brasil.

Já os oportunist­as mal intenciona­dos, em busca de blindagem contra investigaç­ões, se aproveitam da onda de questionam­ento às organizaçõ­es de controle para tentar atingi-las no seu âmago.

É o que faz Jair Bolsonaro (PSL) ao atropelar etapas hierárquic­as e meter-se em movimentaç­ões de cargos de chefia na PF, na Receita e no Coaf. Fica patente o ânimo de punir servidores cujo trabalho causou constrangi­mento a familiares do presidente da República.

Ajoelhar-se ante a tal capricho do mandatário equivaleri­a a retroceder ao tempo das cavernas da organizaçã­o política. Fazem bem os comandos das corporaçõe­s ao ameaçarem um movimento de demissão coletiva caso a sandice prospere.

Ainda assim, o rolo compressor dos expurgos presidenci­ais esmagou um servidor nesta segunda (19), com a substituiç­ão do número dois do fisco federal, João Paulo Ramos Fachada. O descomedim­ento do chefe de Estado é tamanho que cabe indagar, inclusive à Justiça, se não há desvio de finalidade do mandatário nas intervençõ­es.

Se não recuar do modo de choque com a institucio­nalidade, Jair Bolsonaro terá de ser contido por ela.

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