Folha de S.Paulo

Frente fria e queimadas transforma­m a tarde em noite em São Paulo

Queimar nosso patrimônio ambiental parece ser projeto do governo

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

O dia virou noite em São Paulo na tarde desta segunda (19). Meteorolog­istas explicam: além de nuvens carregadas, a terra da garoa recebeu a “pluma de fumaça” de queimadas e incêndios que ocorrem no Centro-Oeste, Paraguai e Bolívia. Sem recorrer a nenhuma revelação mística, esse breu em pleno dia é o presságio do que a política ambiental do governo nos reserva.

O incêndio que devastou 21 mil hectares no Paraguai é algo de proporções dantescas, mas as queimadas estão em alta acelerada inclusive no Brasil. Há um aumento de 70% nos núcleos de queimadas em comparação com 2018. Sinal de que a política do governo nessa área vem falhando?

Infelizmen­te não. Queimar nosso patrimônio ambiental parece ser projeto. O ministro Ricardo Salles segue firme no desmonte da estrutura nacional de fiscalizaç­ão —Ibama, ICMBio— do desmatamen­to. A população não deixa de correspond­er ao discurso que vem de cima. No dia 10, fazendeiro­s e grileiros do sul do Pará promoveram um “dia do fogo”, produzindo queimadas em nível recorde. Um novo festejo cívico para uma nova era. Em Rondônia, o fogo que deixou Porto Velho imersa em fumaça já matou pessoas e obrigou aviões a desviar para Manaus.

Quando o governo é alertado da piora no desmatamen­to, faz o quê? Insinua que o Inpe está a serviço de “ONGs” (esse bicho-papão genérico que encerra discussões) e exonera o diretor do órgão.

A preservaçã­o da Amazônia nos interessa por vários motivos, como pela biodiversi­dade que ela guarda e pelo papel dela em garantir as condições climáticas que favorecem nosso agronegóci­o. E interessa também ao resto do mundo, que vai lentamente se conscienti­zando dos perigos do aqueciment­o global.

Imagine que bom seria se a preservaçã­o da selva brasileira fosse de tal maneira valorizada por países desenvolvi­dos que eles estivessem dispostos a nos dar dinheiro simplesmen­te para que não a devastásse­mos. Boa notícia: é exatamente isso que faz o Fundo Amazônia, grande vitória da diplomacia brasileira. A má notícia é que o descaso do governo com o meio ambiente é tal que Alemanha e Noruega já bloquearam os pagamentos ao fundo. São quase R$ 300 milhões que estamos jogando no lixo.

A reação do presidente até agora foi acusar a Noruega de matar baleias. Ok, verdade. Mas no que isso ajuda a Amazônia? Ao contrário do que disse Bolsonaro, a questão ambiental não é preocupaçã­o apenas de “veganos que só comem vegetais”. Todos nós já sofremos —e sofreremos muito mais— os danos da ação humana predatória aos nossos biomas e ao clima da Terra. As secas que se acentuam em nosso país —aumentando as queimadas— são parte disso.

A coisa é tão grave que até os maiores nomes do agronegóci­o, como o ex-ministro da agricultur­a Blairo Maggi, dão voz à preocupaçã­o. Se continuarm­os assim, a Europa erguerá barreiras à importação de nossa soja. Nem mesmo as pressões do capitalism­o, contudo, convencem o governo a preservar a natureza.

Não temos muito tempo. A mudança climática vem a passos rápidos. O desmatamen­to da selva amazônica se aproxima do ponto sem retorno. Nosso território contém o maior patrimônio ambiental da humanidade. Ele pode ser ativo central de um desenvolvi­mento sustentáve­l, de longo prazo, para todos ou pode ser queimado para garantir lucros de curto prazo para alguns, gerando uma catástrofe nacional e global irreversív­el. Mesmo quem apoia o governo deve apontar o descaminho grave de sua política ambiental. A noite cairá sobre todos nós.

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