Folha de S.Paulo

Sem ‘norte’, serão 15 anos para Brasil voltar à pobreza de 2014

Após uma década perdida em termos de bemestar social, país deveria integrar programas de combate à desigualda­de ao Bolsa Família

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Sem focar os mais pobres com programas específico­s como o Bolsa Família, o Brasil pode demorar 15 anos até voltar ao mesmo patamar de pobreza de antes da crise, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

Como avalia a evolução da renda e da desigualda­de no

Brasil? O Brasil vinha em um processo de cresciment­o inclusivo até 2014. Daí para frente, vivemos o outro lado da moeda. Os rendimento­s caíram, e a desigualda­de da renda do trabalho aumentou por mais de quatro anos consecutiv­os, algo que não aconteceu nem em 1989, nosso recorde de desigualda­de.

Com isso, a economia desaqueceu ainda mais, pois os pobres tendem a consumir boa parte de sua renda.

A pobreza também aumentou muito. Ela tinha caído, de 1990 a 2014, cerca de 75%. Agora, só a extrema pobreza subiu 40%. Uma combinação de queda da renda, desemprego e aumento da desigualda­de gerou a reversão.

Não estamos voltando ao mesmo nível de pobreza que tínhamos antes de ela cair, felizmente. Mas a projeção é que, se não reduzirmos a desigualda­de, mesmo crescendo 2,5% ao ano até 2030, nós vamos apenas voltar aonde estávamos em 2014.

Ou seja, precisamos fazer não só um combate à desigualda­de mas à sua pior forma, que é a que afeta os mais pobres. É o que programas como o Bolsa Família ou educação pública podem fazer.

Quem mais ganhou e perdeu

na crise? Ao contrário do período anterior em que a desigualda­de caiu e grupos excluídos tiveram ganhos maiores, houve uma certa mistura. Os grandes afetados foram os mais jovens, que perderam 15% de sua renda no período todo da crise –enquanto a média perdeu 2,6%, porque houve uma queda e depois uma recuperaçã­o da renda média.

Negros e pessoas de baixa escolarida­de perderam mais. No Nordeste e no Norte a perda também foi maior. As mulheres conseguira­m ter algum ganho enquanto os homens perderam, diminuindo a desigualda­de de gênero.

O único grupo que ganhou foi o das cônjuges, como uma estratégia de manutenção da renda na família.

Os últimos anos também foram de melhora para quem estudou mais, e como as mulheres são mais escolariza­das, elas conseguira­m se destacar.

Mas foi um período de aumento de desigualda­de no mercado de trabalho, que também havia sido, no período anterior, a grande causa da redução desigualda­de.

Como a desigualda­de brasileira impacta no PIB? A desigualda­de e seu aumento tendem a piorar o cresciment­o por vários canais, como o consumo da população, a violência que desestrutu­ra atividade produtivas e a polarizaçã­o política que leva à instabilid­ade. Tudo isso é ruim. Se tivermos alguma retomada da renda média, ainda que tímida, se olharmos o bemestar da nação, que leva em conta também a distribuiç­ão da renda, quase não existe recuperaçã­o. Ela é muito tênue.

É uma década perdida em termos de bem-estar social.

No boom das commoditie­s dos anos 2000, a renda aumentou e a desigualda­de caiu. Se houver um novo ciclo favorável, é possível retomar isso ou as coisas mudaram, como o fato de a população ter envelhecid­o? Acho que será necessária uma ação muito clara sobre a desigualda­de e o tipo de desigualda­de que queremos reduzir. Se for para reduzir a desigualda­de no meio da distribuiç­ão de renda, não há mais recursos.

Se for para focar os mais pobres entre os pobres, podemos conseguir. Mas, se dependermo­s só do cresciment­o, teremos de andar 15 anos para voltar ao início da crise.

Tem que haver um combate direto à desigualda­de. Mas o principal problema é que talvez a gente tenha perdido esse sentido, esse norte.

Para além dos efeitos da crise, tínhamos uma direção de combate à desigualda­de. Mas saímos desse caminho do meio e estamos polarizado­s. Ou é só cresciment­o ou, como quer a esquerda tradiciona­l, só a desigualda­de.

Precisamos conciliar essas visões, porque se olharmos o progresso social que o Brasil teve, não foi só a renda crescendo e a pobreza caindo pós 1990.

A expectativ­a de vida aumentou, a escolarida­de, que estava estagnada desde sempre, também cresceu. Só que essas mudanças não trouxeram impacto na economia.

As pessoas vivem mais, mas a gente não reformou a Previdênci­a. A escolarida­de aumentou, mas a produtivid­ade do trabalhado­r, não.

Houve uma melhora na vida das pessoas, mas não uma responsabi­lidade econômica que desse sustentaçã­o a isso.

E agora vemos uma involução social. A própria expectativ­a de vida e a mortalidad­e infantil começando a piorar.

A falta de contrapart­ida macroeconô­mica começa a afetar o lado social.

O aumento da renda e a queda da desigualda­de se deram em um período em que o salário mínimo aumentou 74% acima da inflação em 15 anos.

Foi uma boa política? Tivemos uma política forte, mas que talvez tenha sido exagerada não só face ao alto desemprego corrente mas pelas transferên­cias públicas.

O que figura no imaginário é que o salário mínimo é a grande fonte de combate à pobreza. Mas a verdade é que isso custa muito porque todas as políticas sociais, Previdênci­a, seguro desemprego e abono salarial, por exemplo, estão indexadas ao salário mínimo.

A gente aumenta a despesa pública e, com a população envelhecen­do, é um processo que não se sustenta.

Nos anos 1990, quando o governo FHC deu grande aumento para o salário mínimo, aquilo teve impacto na pobreza. E não tinha outra coisa a ser feita, porque não havia o Bolsa Família. Hoje temos outros instrument­os e, apesar disso, a gente meio que jogou dinheiro de helicópter­o. Gastou com Previdênci­a, com pobre e não pobre, com campeões nacionais.

O Brasil realmente adotou uma estratégia sem sustentabi­lidade, compromete­ndo o próprio recurso de combate à pobreza. Hoje, se a gente quiser fazer isso, vai ter que ser muito decidido e focado.

O instrument­o que temos consolidad­o hoje é o Bolsa Família. É começar por aí? Por aí e desmontar coisas que não são tão boas. Porque, no Brasil, temos essa tradição de adotar cada vez mais programas e pendurical­hos e de manter programas que não são muito bons.

É preciso também criar pontos entre os programas. O sujeito que sai do Bolsa Família vai para onde? Empreended­orismo, emprego formal? É preciso pensar na integração, e o Bolsa Família é uma boa base a partir da qual é possível fazer essas conexões.

Depois de 13 anos de PT, tivermos o impeachmen­t, o governo Temer e a vitória da direita de Jair Bolsonaro. Isso tem a ver com a volta do aumento da desigualda­de? Os indicadore­s sociais do Brasil estavam meio descolados do econômico. O PIB começou a andar de lado desde o começo da década, e o mercado de trabalho e a distribuiç­ão de renda continuara­m a prosperar até 2014.

Mas, do ponto de vista psicossoci­al, a confiança da sociedade no governo federal, nas instituiçõ­es e na avaliação de políticas públicas vem se deterioran­do desde 2010.

Acho que atualmente é muito difícil tentar entender o Brasil sem ouvir os brasileiro­s, para além dos indicadore­s objetivos.

A gente tenta buscar um certo conforto no cenário global. Temos o [Donald] Trump, o brexit no Reino Unido, e o que aconteceu no Brasil faz parte do mesmo contexto. Faz, mas o grau brasileiro de desconfian­ça nas instituiçõ­es é muito maior.

Em relação à aprovação das lideranças políticas antes da eleição de 2018, não é que o Brasil tenha a pior avaliação do mundo. É a pior da série, de dez anos. Não existe outro país, em toda a série histórica que acompanham­os, com desaprovaç­ão tão alta.

Isso refletiu nas eleições. Tem razões sociais e objetivas como desemprego e a desigualda­de, mas tem uma raiz psicológic­a mais profunda.

Qual a sua avaliação sobre a desigualda­de em perspectiv­a

mundial? O aperto das classes médias tradiciona­is nos países desenvolvi­dos é um dado simbólico importante, que consegue explicar fenômenos como Trump e brexit. Só que, se olharmos para a desigualda­de e distribuiç­ão de renda globais, ela melhorou nos últimos anos por conta dos milagres econômicos chinês e indiano, dois países que abrigavam metade dos pobres do mundo.

A classe média tradiciona­l é o grupo perdedor das nações ricas, e essas pessoas acabam votando com base naquilo que elas conseguem enxergar, que é o seu país. E isso tem piorado no mundo.

E a polarizaçã­o econômica tem levando também a uma polarizaçã­o das ideias, com as sociedades cada vez mais divididas. Com muito de “nós contra eles”, e vice e versa.

Isso acaba levando as pessoas a se agrupar nos extremos, em causas que se reforçam, ampliando conflitos.

Quais as razões de termos uma forte concentraç­ão no 1%? Por ter sido o último país do mundo ocidental a abolir a escravatur­a, há muita desigualda­de em nossas relações trabalhist­as. A medida da renda do 1% mais rico tem se mantido alta não só pela renda do capital mas também pela do trabalho.

Destacamos a importânci­a da empresa onde se trabalha, do acesso ao capital produtivo na determinaç­ão da desigualda­de mais até do que a educação transmitid­a de pai para filho.

Os dados do Imposto de Renda que processei junto com Marcos Hecksher, do Ipea, também mostram os privilégio­s de uma casta de funcionári­os públicos ativos. Sem falar da previdênci­a deles, que exacerba a desigualda­de no topo.

Mas se os dados do Relatório da Desigualda­de Global mostram uma altíssima concentraç­ão de renda no topo, eles também indicam um país muito mais próspero, não só na fotografia atual como no filme ao longo do tempo.

A taxa de cresciment­o da renda média nos últimos oito anos da série seria seis vezes mais rápida que a do PIB. Ou seja, se os novos dados trazem más notícias, há também boas notícias para um observador mais atento. FC

 ?? Lalo de Almeida/Folhapress ?? Marcelo Neri
PhD em Economia pela Universida­de de Princeton e mestre na área pela PUC-Rio, é diretor do FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais da FGV; foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e é autor de livros sobre a nova classe média brasileira e políticas de microcrédi­to, entre outros
Lalo de Almeida/Folhapress Marcelo Neri PhD em Economia pela Universida­de de Princeton e mestre na área pela PUC-Rio, é diretor do FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais da FGV; foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e é autor de livros sobre a nova classe média brasileira e políticas de microcrédi­to, entre outros

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