Folha de S.Paulo

Prisão de líderes de grupos sem-teto põe ocupações em São Paulo em xeque

Ministério Público alega que exemplos passados de conexões criminosas podem se reproduzir

- Paulo Gomes e Marlene Bergamo

Um pedido de prisão de líderes de organizaçõ­es por moradia em São Paulo suscitado por acusações de extorsão em ocupações, algumas delas com fim trágico, coloca em xeque o destino de movimentos que vêm recuperand­o edifícios ociosos no centro da cidade.

Segundo especialis­tas em habitação, ao generaliza­r os movimentos, a decisão pode pôr por terra algumas soluções implantada­s com efeitos positivos.

Na denúncia, o promotor Cássio Conserino utiliza casos notórios de ocupações associadas a condutas criminosas —como a do antigo Cine Marrocos e a do prédio Wilton Paes de Almeida— para concluir que o mesmo ocorreria em outras ocupações.

Com base na denúncia, a Justiça de São Paulo determinou, no início deste mês, a prisão preventiva de nove líderes de diferentes movimentos de moradia na capital paulista. Manteve, também, a prisão de outros quatro detidos em junho.

Na denúncia, o promotor afirma que “operações policiais já culminaram com a prisão de membros do PCC em ocupações ‘sem-teto’”, em alusão à ação contra o tráfico de drogas no Cine Marrocos em 2016. O local era ocupado pelo movimento MSTS, grupo que não consta na denúncia atual.

Ele nega, contudo, que busque deslegitim­ar os movimentos: “Não se pretende criminaliz­ar movimentos sociais que, em tese, deveriam ser legítimos; ao contrário, se pretende criminaliz­ar, com forte investigaç­ão, os responsáve­is pelas condutas criminosas e que se escondem sob o pálio de tais movimentos para extorquir toda sorte de vítimas, fazendo-os sob modelo de organizaçã­o criminosa”, escreve na denúncia.

A decisão da Justiça distingue cinco movimentos: MLSM, MMPT, FLM, MMCR e TNG. O primeiro ocupava o Wilton Paes de Almeida, prédio que desabou em maio de 2018 após incêndio, resultando em sete mortes.

Dos líderes que tiveram a prisão preventiva decretada, quatro são do MLSM: Ananias Ferreira dos Santos, Andreya Tamara Santos de Oliveira, Josiane Cristina Barranco e Hamilton Coelho Resende.

Ananias é apontado como chefe do grupo, acusado de extorquir moradores com ameaças e violência. Os demais pertencem a outros movimentos.

Em outro trecho, Conserino diz que conversas de ativistas grampeados “demonstram claramente a relação umbilical envolvendo integrante­s de movimentos sociais com integrante­s de facção criminosa”.

Os diálogos, gravados pela Polícia Civil de São Paulo, envolvem Edinalva Silva Franco, do MMPT, presa em junho. Na conversa, ela menciona os “irmãos” (gíria para o PCC) ao lidar com um caso de pedofilia em uma ocupação.

Ainda segundo a denúncia, Manoel del Rio, suplente do PT na Câmara Municipal, seria “uma espécie de líder de todos os movimentos”, e os moradores das ocupações seriam constrangi­dos a comparecer a manifestaç­ões pró-PT.

Em nota, a presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, alega que as investigaç­ões e a denúncia foram conduzidas para incriminar os movimentos e o PT.

“O promotor à frente do caso, Cássio Conserino, é notório antipetist­a, apresentou falsas denúncias contra a família do ex-presidente Lula e foi condenado a indenizá-lo por calúnia”, afirma Gleisi. A deputada diz ainda que a decisão judicial sobre a prisão preventiva de Manoel del Rio se ampara em alegações falsas.

Especialis­tas em política de habitação veem risco na forma como o processo avança.

Para esses estudiosos, as ocupações de prédios ociosos oferecem uma solução de habitação na metrópole, e exemplos bem-sucedidos podem, agora, se perder ao serem equiparado­s a ocupações onde há atividade criminosa.

“Fazer moradia popular na periferia é dizer que o lugar das pessoas é lá. Quando você dá a oportunida­de ao cidadão de morar perto de onde tem metrô, onde tem serviços, é um processo de inclusão social”, afirma Francisco de Assis Comarú, professor do curso de engenharia ambiental e urbana da UFABC.

Comarú afirma que o Ministério Público e o sistema de Justiça estão “misturando um pouco as coisas”. “Essas famílias prestam um serviço de acolhiment­o que o Estado deveria prestar, no direito à moradia. A sociedade civil se organiza para solucionar [esse problema] e o Estado vem e promove esse ato de criminaliz­ação. É preocupant­e.”

Para Celso Sampaio, da Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo do Mackenzie, a denúncia é “bastante injusta”.

“A arrecadaçã­o com os moradores é compactuad­a em assembleia, é apresentad­o o destino dos gastos”, diz o professor que há três décadas trabalha com habitação de interesse social, assessoran­do ocupações que reabilitam prédios.

Luis Octavio de Faria e Silva, da Escola da Cidade, classifica a peça judicial de “reducionis­ta” e vê preconceit­o. “Tem vários movimentos extremamen­te organizado­s.”

“É uma investigaç­ão generaliza­da de uma série de movimentos sociais com lideranças diferentes, formas de atuação diferentes e ocupações diferentes”, afirma o advogado Augusto Arruda Botelho, que defende Janice Ferreira Silva, da Ocupação 9 de Julho e também presa em junho.

A Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo vê um motor político na ação do Deic (Departamen­to Estadual de Investigaç­ões Criminais) e deve emitir um parecer a respeito em setembro, após debate.

Na próxima quinta (22), o Tribunal de Justiça deve julgar pedidos de habeas corpus dos acusados.

Na semana passada, uma das acusadas, Carmen Silva Ferreira, líder da FLM/MSTC, foi absolvida pela segunda vez em outro processo por extorsão. Seu advogado, Ariel de Castro Alves, nega que ela tenha laços com o grupo de líderes do edifício Wilton Paes de Almeida (leia texto nesta pág.).

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