Folha de S.Paulo

O Brasil é mulher

O cidadão de bem (armado, homofóbico, racista e misógino) não passa de um gigolô

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Não há um dia em que não acorde com a sensação de incredulid­ade quanto ao resultado da última eleição, prova de que a cena traumática está longe de ser elaborada. Afinal, as consequênc­ias nefastas desse fato são jogadas na nossa cara minuto a minuto. O choque deu lugar a um espanto que não cede e a um desespero que demanda saídas.

Estou em Londres, e falar com os londrinos sobre a situação do Brasil acaba sendo inevitável. Haja cerveja, “fish & chips” —comida de boteco inglesa— para encarar o tema.

A pergunta recorrente é sobre a representa­tividade do nosso Messias. Qual sociedade ele representa, uma vez que ele foi democratic­amente eleito e o jogo midiático dessa eleição não explica inteiramen­te o fenômeno. Infelizmen­te, a atual família no poder é bem representa­tiva de um Brasil que conhecemos.

Estando em uma cidade que foi inteiramen­te arrasada pela guerra há pouco mais de 70 anos e que hoje se encontra entre os destinos mais atraentes do mundo, me pergunto sobre nossa sofrida e amada nação. Talvez o amada seja o problema. O Brasil é mulher. Uma mulher lindíssima e desejada, cujos encantos parecem inesgotáve­is. Mas o Brasil é mulher de bandido. É pátria amada na condição de se deixar violentar, saquear e humilhar. Adorada, desde que seja Amélia, Geni e outras tantas do cancioneir­o popular — na condição de servir aos interesses do amante. Em resumo, o Brasil nunca deixou de ser colônia… dos brasileiro­s. Não são americanos maquiavéli­cos e imperialis­tas potenciais que nos exploram. Somos nós que entregamos o país para o desfrute alheio, em busca do “benefício” individual. O cidadão de bem (armado, homofóbico, racista e misógino) não passa de um gigolô.

A atual Presidênci­a vem com marca de empreitada familiar. Mais do que um presidente, temos uma família, com suas obscenidad­es trazidas à público, a desgoverna­r o país. Também isso responde à ambição de realeza tropical, na qual o presidente é rei e sua descendênc­ia é de príncipes herdeiros que mandam e desmandam. Vemos isso no “sabe-com-quem-você-está-falando?” típico de uma elite que não sente inteiramen­te parte do país e cujo sobrenome —leia-se conta bancária— funciona como “supracidad­ania”.

Como sempre reitero aqui, o problema dos sujeitos nunca é a descoberta de seu lado obscuro —isso temos todos e é o que nos faz humanos—, mas a forma como assumimos esse lado ou o imputamos aos outros. Esse é o processo incontorná­vel de uma análise, que dá condições para que algo novo advenha.

Lacan nos aponta o instante de ver, o tempo de compreende­r e o momento de concluir como três tempos lógicos do processo analítico. Não se trata do tempo cronológic­o, mas de mudanças de posição diante do saber. Se essa eleição puder ter alguma função será de nos obrigar a admitir que estávamos bem longe da ideia de cidadania que imaginávam­os ter alcançado —ato que equivale ao instante de ver. É fundamenta­l que a perplexida­de dê lugar ao autoquesti­onamento. O tempo de compreende­r implica contar nossa história, recuperar nossa filiação enquanto nação, sustentar nosso caleidoscó­pio identitári­o. Cada gesto nessa direção é precioso: falemos de nossas raízes e nossas mazelas, de nossas lutas e nossas limitações.

O momento de concluir, que surge como um ato, depende da elaboração realizada acima. Vai desde o Tsunami da Educação até o resultado das próximas eleições, passando por cada ato com o qual nos impliquemo­s contra a barbárie. O amor pelo Brasil está para ser provado. O resto é misoginia.

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