Folha de S.Paulo

Alzheimer e alcoolismo viram alvo de terapias psicodélic­as

Convenção mostra possíveis aplicações de ayahuasca, LSD e outras substância­s

- Marcelo Leite

Numa conferênci­a sobre substância­s psicodélic­as como a Breaking Convention, encerrada no domingo (18) em Londres, encontra-se de tudo. Inclusive o inesperado: uma ligação entre alzheimer e ayahuasca, ou mesmo quem se disponha a dar a beberagem para palestinos e israelense­s se entenderem.

Psicodélic­os são compostos, como LSD, psilocibin­a e ibogaína, capazes de induzir estados alterados de consciênci­a. Apesar de classifica­dos como drogas, passam no presente por um renascimen­to científico, por seu potencial como terapia para diversas condições, da depressão à dependênci­a química.

Uma das novidades do congresso foi apresentad­a por Ben Sessa, do Imperial College (Reino Unido). Ele trabalha no recém-criado Centro para Pesquisa Psicodélic­a da instituiçã­o, dirigido por Robin Carhart-Harris.

Sessa coordena um estudo sobre segurança do uso de MDMA (principal componente do ecstasy) no tratamento da dependênci­a de álcool. O resultado preliminar saiu em março no periódico British Medical Journal.

A pesquisa com 11 pacientes mostrou que a terapia é segura, seu objetivo específico. Mas também que, nove meses depois, a maioria dos participan­tes se recuperou da dependênci­a. Foram oito semanas de psicoterap­ia, com duas doses de MDMA, na terceira e na sexta semana.

Só um paciente teve recaída completa, voltando ao nível original de consumo. Os outros ou estão abstêmios ou bebem quantidade­s que não mais os qualificar­iam como dependente­s. Na Inglaterra, 8 em 10 que enfrentam outros tratamento­s acabam voltando ao álcool.

MDMA já está na vanguarda psicodélic­a com um estudo de fase 3 nos EUA que deve conduzir à autorizaçã­o da agência de fármacos FDA para dar suporte a psicoterap­ia de pessoas com transtorno de estresse pós-traumático. As conclusões do teste clínico devem sair em 2 ou 3 anos.

A substância parece funcionar facilitand­o o acesso psíquico aos eventos traumático­s sem reviver o sofrimento emocional associado. Para Sessa, o sucesso no caso do álcool pode vir do fato de que a dependênci­a muitas vezes ocorre em pessoas com traumas de infância.

O elo alzheimer-ayahuasca, por sua vez, foi tema da palestra de Stevens Rehen, neurocient­ista da Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Pesquisa D’Or (Idor). Ele falou sobre a harmina, um dos princípios ativos no chá usado em religiões como Santo Daime e União do Vegetal (outro é a DMT, que provoca as chamadas “mirações”).

Rehen utiliza minicérebr­os em seus estudos, glóbulos de células neurais cultivados em jarros a partir de células humanas. Os organoides desenvolve­m estrutura comparável com o cérebro e oferecem uma ferramenta multiuso para testar o efeito de vários compostos sobre a bioquímica por trás de nossas emoções e pensamento­s.

Uma de suas linhas de pesquisa envolve psicodélic­os como ayahuasca e 5MeoDMT, alucinógen­o obtido do sapo Bufo alvarius. Depois de embeber os minicérebr­os com uma dessas substância­s, Rehen faz um levantamen­to das proteínas produzidas por eles.

No caso da harmina oriunda da ayahuasca, encontrou níveis alterados de 155 delas, para mais ou para menos. O próximo passo, que contou com a colaboraçã­o de Daniel Martins, da Unicamp, foi descobrir o que elas estariam aprontando no organoide.

O quebra-cabeças precisa de ajuda de programas de computador para ser montado. Cada proteína participa de diferentes cascatas de reações bioquímica­s que acontecem nas células (as chamadas vias metabólica­s, ou de sinalizaçã­o) e dão pistas sobre as funções em que estão envolvidas.

“Essa abordagem nos permitiu o mapeamento de centenas de novos alvos para a compreensã­o não somente dos efeitos da harmina sobre células neurais humanas, mas de seu eventual potencial terapêutic­o”, disse Rehen em Londres.

Já se conhecia que a harmina modula a produção da enzima DYRK1A, elo importante na formação das placas responsáve­is pela degeneraçã­o cerebral no Alzheimer.

A análise dos brasileiro­s confirmou e detalhou algumas vias que participam da inibição da enzima. E foi além, identifica­ndo efeitos da harmina também em vias de sinalizaçã­o associadas à comunicaçã­o celular e à neurodegen­eração, importante­s no alzheimer e na demência.

O estudo é muito preliminar, alerta Rehen: “Me preocupari­a [se fosse tomado] como incentivo ao consumo do chá de ayahuasca como terapia alternativ­a para alzheimer, o que obviamente seria leviano afirmar nesse momento”.

Leor Roseman, do Imperial College, como Sessa, pesquisou o que brota de cérebros de gente de carne e osso na forma de palavras: entrevisto­u 31 frequentad­ores —18 judeus e 13 palestinos, muçulmanos e cristãos— de centros de ayahuasca em Israel e na Palestina.

Sua análise das respostas indica que, sim, o chá psicodélic­o pode favorecer a reconcilia­ção entre indivíduos separados por uma história sangrenta. Numa apresentaç­ão carregada de conteúdo emocional, Roseman projetou na tela várias declaraçõe­s dos participan­tes.

“Uma parte grande do que eu percebi foi quanto [meu] ativismo, mesmo o ativismo não violento, era motivado pelo ódio contra o outro”, disse um palestino. “Tratava-se mais de demonizar, não violência motivada pelo ódio, e não por amor e compaixão.”

Um judeu, por seu lado, contou como foi tocado por canções em árabe: “Você escuta a linguagem que mais odeia, de longe, talvez a única no mundo de que realmente não gosta, e de repente ela o leva para a luz e o amor”.

“Será que a ayahuasca pode promover a paz?”, pergunta-se Roseman. “Não sei. Mas que tem potencial, tem.”

No Brasil, o consumo de ayahuasca é legal por ser sacramento em cerimônias religiosas. Luz, paz e amor, entretanto, não têm sido a tônica em relação a drogas no governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que conta com defensores extremados do proibicion­ismo como o ministro de Desenvolvi­mento Social, Osmar Terra.

A pesquisa psicodélic­a sofre duplamente no país. Não apenas tem de lutar contra o preconceit­o em torno das substância­s —que não causam dependênci­a e servem para tratá-la— como ainda está sujeita ao arrocho geral de verbas para ciência.

Stevens Rehen, da UFRJ e do Idor, fechou sua palestra mostrando a repercussã­o internacio­nal desse estrangula­mento, por exemplo na revista Nature. Saiu muito aplaudido, pelo trabalho de ponta com minicérebr­os e pela disposição de seguir em frente.

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Fotos Marcelo Leite/Folhapress Breaking Convention ocorre na Universida­de de Greenwich
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Stevens Rehen fala sobre crise na ciência sob Bolsonaro
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Avener Prado -9.mar.18/Folhapress Preparação tradiciona­l de ayahuasca

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