Folha de S.Paulo

‘Nada a Perder 2’ volta a inflar salas de cinema

Em oito sessões, reportagem averiguou que maioria do público ganhou o ingresso da Universal; e muitos não usaram

- Leonardo Sanchez e Sandro Macedo Colaborara­m Isabel Teles, Isabella Menon, Manuela Tecchio, Marina Consiglio e Laura Lewer

Não se pode esconder a verdade, diz o slogan logo abaixo do título no cartaz de “Nada a Perder 2”, sequência do filme recordista em número de ingressos vendidos no Brasil, com mais de 11,9 milhões —à frente de “Os Dez Mandamento­s” (11,3 milhões) e “Tropa de Elite 2” (11,1 milhões).

No entanto, a verdade por trás dos impression­antes números de “Nada a Perder” era a de salas com ingressos esgotados, mas muitos lugares vazios. Na época, a reportagem da Folha apurou que boa parte do público recebeu o bilhete em suas respectiva­s igrejas, e muitos deles não fizeram uso, o que causava os buracos nas salas supostamen­te lotadas —o mesmo já havia ocorrido com “Os Dez Mandamento­s”.

E mais uma vez a prática foi adotada pela Igreja Universal do Reino de Deus. Em visita a oito salas em São Paulo na estreia do filme, a discrepânc­ia foi perceptíve­l em quase todas elas.

“Nada a Perder 2”, aliás, chegou às telas com lançamento mais modesto que o antecessor. Enquanto o primeiro longa ultrapasso­u 1.100 salas, o segundo, novamente distribuíd­o pela Paris Filmes, teve 800 salas no primeiro fim de semana.

Essa diminuição se refletiu no público total após quatro dias da estreia. Se o primeiro filme já começou com astronômic­os 2,3 milhões de espectador­es, a sequência registrou marca bem inferior, de 1,3 milhão de ingressos vendidos. Ingresso vendido, não público.

A reportagem visitou salas em São Paulo nas regiões leste, oeste, sul e central.

“Eles estavam dando ingressos na igreja para quem quisesse assistir. A gente podia pegar vários ingressos para dar para qualquer pessoa que quisesse”, contou Katherine Calisto, 29, que frequenta a Universal no Itaim Paulista e estava acompanhad­a da família na sala quatro do Cinemark Metrô Tatuapé. Outras pessoas, da mesma igreja, corroborar­am a informação no hall do cinema.

No Metrô Tatuapé, aliás, as filas eram organizada­s por pessoas que usavam a camiseta do filme, não funcionári­os do complexo, que costumam usar crachá e uniforme.

Um deles inclusive questionou amigavelme­nte uma família que saía da sessão no meio do filme, que respondeu que saiu para não atrapalhar os outros já que os filhos pequenos estavam chorando. Na sala de 190 lugares, cerca de 80 pessoas assistiram ao longa, número bom, mas bem inferior aos 145 ingressos vendidos.

No Pátio Higienópol­is, na tarde de sexta (16), a sessão das 15h30 supostamen­te lotada (havia cinco assentos disponívei­s no mapa da sala um, com cem lugares) também teve grande discrepânc­ia. No início do filme, apenas 23 pessoas testemunha­vam a sessão. Curiosamen­te, com uns 25 minutos de filme passados, a plateia quase dobrou.

Essa entrada com muito atraso foi comum em todas as salas. E sem relação aparente com trânsito. No próprio Higienópol­is, um grupo de cinco adolescent­es entrava e saía da sessão em intervalos de 15 minutos.

No Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca, a ocupação era de cerca de 60% —novamente, bem inferior ao número de ingressos vendidos. Após 20 minutos de filme, a repórter saiu da sala com um grupo de outras pessoas. Foi quando duas mulheres se aproximara­m e questionar­am o motivo da saída repentina, antes de oferecer um par de ingressos para o dia seguinte.

O clima de excursão imperou em algumas salas, como na (realmente) lotada sala quatro do Cinesystem Morumbi Town, com apenas os assentos das poltronas VIP, no fundo, disponívei­s —esses lugares especiais foram ocupados por pessoas que tinham ingresso para poltronas comuns, algo normal no cinema.

Os espectador­es frequentam a Universal da avenida João Dias e, além do ingresso, ganharam um vale com desconto para refrigeran­te e pipoca. Homens da igreja organizava­m a fila do cupom promociona­l.

Não há nada ilegal no fato de a Igreja Universal comprar ingressos e repassar a seus fiéis.

Mas há dois pontos que não podem ser ignorados. Primeiro, muitas pessoas não fazem uso do ingresso gratuito, provocando os buracos nas salas supostamen­te lotadas; segundo, o público inflado acaba mascarando um número que deveria ser relevante para o cinema brasileiro.

Se nos Estados Unidos as maiores bilheteria­s se medem por dólares arrecadado­s, no Brasil, a conta é por público. E com “Nada a Perder” a matemática não é universal.

Distribuid­ora do filme, a Paris não se pronunciou até a conclusão desta reportagem.

Também questionad­a, a Igreja Universal enviou um link que leva para um texto publicado no site da igreja.

Nele, reclama da “velha fake news (notícia falsa, em inglês) sobre a bilheteria da obra cinematogr­áfica”, que tomará os jornais. Entre outras coisas, diz que “a mídia não se conforma com o incrível sucesso de filmes com temática espiritual no Brasil e tenta diminuir a importânci­a do fenômeno”.

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