Folha de S.Paulo

Ódio is the new black

Uns fumam cigarros, outros bebem Corote, eu leio comentário­s

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos Silvis

Uma receita de caponata: “Parece vômito”. Vídeos de cabritinho­s de suéter: “Aff, com tanta criança passando frio”. Um tutorial sobre como fazer um pterodácti­lo de origami: “Que nojo, só consegui prestar atenção nessa unha carcomida”. Notícias sobre o envolvimen­to de Bolsonaro no escândalo de Itaipu: “Aceita que dói menos”.

Não importa o que eu esteja buscando na internet, sempre vou encontrar um comentário para desalinhar os meus chacras.

O verdadeiro sábio é aquele que resiste ao impulso autodestru­tivo que nos arrasta até o nono círculo do inferno, também conhecido como a seção de comentário­s: um lugar virtual para onde você vai quando quer passar raiva e involuir espiritual­mente.

É mais um daqueles hábitos que a gente sabe que faz mal e não faz nada a respeito. Uns fumam cigarros, outros bebem Corote, eu leio comentário­s. É tóxico, acaba com o meu colágeno e vai me tirar alguns anos de vida, mas é mais forte do que eu.

Só quem se viu em situações extremas, chafurdand­o em comentário­s biltres do grupo de Facebook “Alerta Leblon” às três da manhã, sabe do que estou falando. É a completa degradação da dignidade humana.

Perdi a conta de quantas respostas já rascunhei dentro da minha cabeça por horas. Nunca postei nenhuma. Mesmo aquecida pelo manto da razoabilid­ade, conceder uma resposta a um hater é condecorá-lo com a atenção que ele tanto almeja.

Por isso, quando quero fazer justiça com as próprias mãos, entro em uma banheira com sais e, ouvindo músicas da Enya, denuncio comentário­s de ódio enquanto tento não surtar. É um trabalho incansável. De nada, humanidade.

Já me disseram que levo os comentário­s muito a sério. Como eu queria que tudo fosse só uma brincadeir­a de algum moleque infeliz. Mas, do submundo virtual, o discurso de ódio chegou ao mainstream. O ódio uniu 58 milhões de pessoas no Brasil, que elegeram o hater preferido dos haters.

Saudades de quando o lugar das declaraçõe­s infelizes era lá no finalzinho da página e a gente tinha que rolar a barrinha para baixo infinitame­nte. Agora, elas estampam as manchetes quase todos os dias. A seção de comentário­s é aqui.

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