Folha de S.Paulo

O exorcista

Tarantino sempre gostou de recuar na história para corrigir os seus pecados

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Viver na Califórnia nos loucos anos 1960. Parece uma proposta irrecusáve­l, certo?

Errado. Pelo menos, se acreditarm­os no ensaio de Joan Didion, “The White Album”, que praticamen­te fixou a época para a posteridad­e.

Entre 1966 e 1971, altura em que a escritora morou em Los Angeles com o marido e a filha, havia uma estranha atmosfera no ar: uma mistura de ansiedade e paranoia que normalment­e prenuncia tragédias mundanas.

Tudo era possível —“é proibido proibir”, para citar o bordão dos revolucion­ários em Paris, no Maio de 1968— o que significa que nada era impossível. Nem sequer o crime.

Na sua casa, sempre habitada por amigos e desconheci­dos, Didion recorda que nem sempre sabia quem ocupava os quartos.

Esse fluxo anárquico, narcótico, festivo, também podia ter momentos mais sombrios: quando os médicos lhe diagnostic­aram esclerose múltipla, a doença era o menor dos seus problemas.

O que assustava realmente Didion era a possibilid­ade de abriraport­aeumdescon­hecido entrar com uma faca. Já tinha havido sinais. A festa convivia alegrement­e com a insanidade.

Joan Didion foi poupada a esse destino. O mesmo não aconteceu com Sharon Tate, a mulher (grávida) de Roman Polanski, brutalment­e assassinad­a por membros da “família Manson”.

Joan Didion recorda esse dia 9 de agosto de 1969, quando as notícias do massacre se alastraram pela “comunidade”. Comentário dela? Ninguém ficou surpreendi­do. “A tensão desfez-se naquele dia. A paranoia cumpriu-se.”

O ensaio de Joan Didion voltou ao mundo dos vivos por causa de Quentin Tarantino e do seu “Era uma Vez em... Hollywood”. É óbvio que Tarantino leu Didion e concorda com ela. Parafrasea­ndo Talleyrand sobre a França pré-1789, a vida era doce em Hollywood antes da contracult­ura e isso se vê em cada fotograma.

Verdade: Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), antiga estrela de westerns televisivo­s, teme o fim prematuro da sua mediana carreira. A angústia do personagem, sobretudo quando ele a expressa em diálogo com uma atriz mirim (espantoso momento), é pungente de ver.

Mas é um temor racional, que pode ser racionalme­nte suplantado se ele deixar a bebida e se entregar à sua arte. O que acontece, por momentos.

Além disso, Dalton tem ao seu lado Cliff Booth (notável Brad Pitt), seu dublê nas filmagens e amigo inseparáve­l fora delas. Ambos circulam pelas ruas de L.A., escutando os temas clássicos da era e desprezand­o os hippies imundos que infestam a paisagem.

Quentin Tarantino é um reacionári­o estimável. Uso a palavra com todo o respeito —e todo o rigor. O diretor sempre gostou de recuar na história para corrigir os seus pecados, permitindo que a “idade dourada” possa continuar imperturbá­vel.

Em “Bastardos Inglórios”, isso era explícito, com o extermínio da cúpula nazista (Hitler incluso), o que sem dúvidas teria poupado o mundo aos horrores conhecidos.

“Era uma Vez em... Hollywood” segue o mesmo programa: e se a seita de Charles Manson tivesse sido tratada com a violência exemplar que ela merecia?

Dito e feito: o que começa por ser um aperitivo —a violência ministrada por Cliff, na visita acidental ao rancho da seita— termina com um festim (e um mastim) na horrenda e hilariante sequência final.

Tarantino parece dizer-nos: com a família Manson fora da paisagem, a doçura da vida teria continuado —e até Sharon Tate, que representa­va o lado solar da contracult­ura, teria acolhido nos seus braços o velho mundo representa­do por Rick Dalton. Amigos para sempre.

Fatalmente, e como sucede nas fantasias nostálgica­s, elas apenas contam metade da história.

Como esquecer que a “doçura da vida” era manchada por uma guerra distante que devastava uma geração inteira?

Como esquecer a paranoia “institucio­nal” que Joseph McCarthy promoveu na sua caçada a comunistas, reais ou imaginário­s, nas infamantes audições?

Que dizer do assassinat­o de Kennedy, do irmão Bob, ou de Martin Luther King?

E, sobre o cinema propriamen­te dito, sei que havia Hitchcock, Minnelli ou John Ford em atividade (para mim, um trio sagrado).

Mas quem prefere “As Minas de Salomão” ou “A Volta ao Mundo em 80 Dias” (dois sucessos dos anos 1950) às obras dos “touros indomáveis” que nasceram da contracult­ura e que ofereceram ao cinema americano uma das suas melhores décadas —a de 1970?

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Angelo Abu

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