Folha de S.Paulo

Paradoxo

- Antonio Delfim Netto Economista e ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici). Escreve às quartas ideias.consult@uol.com.br

Foi muito importante para o futuro do Brasil a descoberta, pela operação Lava Jato, do inacreditá­vel incesto promovido entre agentes públicos e parte do setor privado.

Ainda que, no curto prazo, isso possa ter perturbado nosso cresciment­o, no longo criou as condições para acelerá-lo.

Poderíamos ter reduzido o seu custo social com uma oportuna e inteligent­e lei de leniência (o que não era tarefa da Lava Jato, mas do governo que ela expôs) que mantivesse as empresas funcionand­o com a expertise técnica que acumularam, que é patrimônio da nação.

A Lava Jato é um ponto de inflexão moral e material na história da sociedade brasileira e seus benefícios são duradouros. Não vejo como ela poderá ser atingida pela aprovação no Congresso da lei de abuso de autoridade.

Explico. Há pelo menos 70 anos adquiri no curso de economia da FEA/USP alguns parcos conhecimen­tos de direito.

Desde então, aceitei que nosso mecanismo de prestação jurisdicio­nal não é perfeito, mas oferece razoável garantia ao acusado. Se não estiver satisfeito, pode recorrer a instâncias superiores (colegiado de juízes) que “controlarã­o” a lisura do processo acusatório e a razoabilid­ade da decisão do primeiro julgamento.

É por isso que estou surpreso com a reação corporativ­ista contra aquela lei, quando afirma que ela é uma ameaça jurisdicio­nal. Sobre o poder do Congresso de gestá-la e o poder do presidente de sancionála ou vetá-la parcialmen­te, não há dúvidas. Que a palavra final sobre ela caberá ao Congresso, que pode rejeitar eventuais vetos, também não.

Há um paradoxo muito interessan­te já apontado pelo competente Elio Gaspari. No caso de eventual denúncia de abuso de autoridade, quem vai promovê-la e julgá-la? O próprio Judiciário!

Logo, se um funcionári­o da Receita, do Coaf, um promotor ou um juiz se julga ameaçado porque será “controlado” pelo próprio Judiciário é porque ele duvida da razoabilid­ade da própria Justiça.

Quem salvou o dia foi o ilustre ministro João Otávio Noronha, nada menos do que o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que defendeu a legitimida­de do controle do abuso de autoridade.

Declarou: “Não temos nada a temer. Aquilo vale para todas as autoridade­s, seja do Judiciário, seja do Executivo, seja do Legislativ­o”.

Como disse o ilustre ministro Fachin, do STF, num artigo antológico publicado no Valor Econômico (12/8): “A obediência à Constituiç­ão é a regra número um da segurança jurídica”.

Portanto, a ação de funcionári­os públicos, procurador­es e juízes será ainda mais forte e bem-vinda se respeitar os princípios e os direitos nela inscritos.

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