Folha de S.Paulo

José Pastore mostrou a bomba

Faz tempo que o Brasil vive no desvão que separa o conservado­rismo do atraso

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

Poucas vezes se ouviu uma advertênci­a tão grave como a que o professor José Pastore fez em sua entrevista à repórter Érica Fraga. O Brasil tem 50 milhões de pessoas no desemprego e na informalid­ade, sem qualquer tipo de proteção social: “Nada, zero. Nem proteção trabalhist­a, nem CLT, nem Previdênci­a, nem seguro saúde, nada. Elas dependem de assistênci­a. Felizmente, temos dois ou três planos de assistênci­a social que quebram o galho.”

Quem acha que esse tipo de capitalism­o selvagem tem futuro, talvez faça melhor cuidando da papelada para conseguir um visto português. Até porque falta à selvageria nacional o ingredient­e capitalist­a, coisa em relação à qual o andar de cima tem secular repulsa. A advertênci­a de Pastore ganha atualidade quando se sabe que mais da metade do valor das deduções do Imposto de Renda com despesas de saúde vão para pessoas com renda superior a dez salários mínimos. Com elas, em 2018 a Viúva deixou de arrecadar R$ 44,4 bilhões. Quem não tem o plano de saúde que permite o rebate, dispõe do malfalado SUS. Desde 2009 ele perdeu 43 mil leitos de internação, equivalent­es a 12,7% da rede.

Pastore exemplific­ou a selvageria que se está estabelece­ndo no mercado de trabalho com uma cena hospitalar: “No novo mundo do trabalho, você tem três enfermeira­s num mesmo hospital. Uma é fixa, outra é terceiriza­da e a outra, freelancer. Fazem a mesma coisa, mas têm remuneraçã­o e benefícios diferentes. Isso é um escândalo para o direito do trabalho convencion­al.”

Faz tempo que o Brasil vive no desvão que separa o conservado­rismo do atraso. Quando os conservado­res ingleses criaram a rede de proteção social para seus trabalhado­res e combateram o trabalho escravo, o andar de cima nacional dizia que eles queriam tornar seus produtos industriai­s mais competitiv­os. (Alô, alô, agrotroglo­ditas.) E assim Pindorama só aboliu a escravidão em 1888, 23 anos depois do fim da Guerra Civil americana. Deu no que deu.

A advertênci­a de Pastore ganha mais peso quando se sabe que há décadas ele propõe a modernizaç­ão das relações trabalhist­as nacionais. O que o professor sempre quis foi modernizaç­ão, mas o que se está colhendo é atraso. O ministro Paulo Guedes tem sido um ativo coordenado­r de seminários neoacadêmi­cos, mas sua quitanda ainda não começou a vender berinjelas.

Está na moda um renascimen­to cultural dos 21 anos da última ditadura, e puseram na vitrine a censura de costumes e o DOI-Codi. Pena, poderiam ter posto o Fundo de Garantia, o PIS e o Funrural, primeira iniciativa nacional de amparo aos trabalhado­res de campo, filha do governo do general Médici. Havia na ditadura um elemento modernizad­or que ainda não mostrou o ar de sua graça nos tempos atuais.

Pastore diz que “nosso mercado de seguros e previdênci­a ainda não despertou para o fato de que 50% da população economicam­ente ativa está na informalid­ade.” Como ele conhece o mercado, tomara que tenha razão, pois nesse caso as seguradora­s e a banca poderiam acordar. É possível, contudo, que eles não despertem porque preferem dormir em paz, como os fazendeiro­s do Vale do Paraíba no século 19, dançando sobre hipotecas.

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