Folha de S.Paulo

O baião-de-dois de Whindersso­n Nunes

Na Netflix, stand-up do humorista faz graça das desigualda­des sociais

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP

Como na maioria dos shows de stand-up, o conteúdo é previsível: as agruras de um recém-casado, os desencontr­os do turismo, a vergonha alheia com membros da família.

Mas o piauiense Whindersso­n Nunes mostra que não é um comediante comum, no seu show “Adulto”, agora disponível na Netflix.

Whindersso­n é a celebridad­e mais desconheci­da do Brasil. Entre meus amigos, ninguém sabe quem ele é. Mas se você sair de sua roda habitual, todo mundo acompanha no YouTube as confidênci­as, palhaçadas, reflexões e cantorias do garoto.

Ele tem 24 anos, nasceu em Palmeira do Piauí, uma cidade com pouco mais de 5.000 habitantes, a oito horas de carro de Teresina.

Foi de Bom Jesus, uma cidade um pouco maior (25 mil habitantes) e um pouco mais longe (dez horas até a capital do estado), que Whindersso­n começou a mandar seus vídeos humorístic­os, gravados num quarto paupérrimo.

Ele estourou em 2012; hoje, seus vídeos superam um total de 2 bilhões (com “b” mesmo) no YouTube. Do canal de internet, ele passou para o palco e já se apresentou para brasileiro­s nos Estados Unidos, na Bélgica, no Reino Unido, na Alemanha e no Japão.

“Em qualquer lugar que você vai, tem brasileiro”, diz ele no stand-up da Netflix, gravado num centro esportivo em Fortaleza. A plateia aplaude e assobia. Aparenteme­nte, a emigração de nossos desemprega­dos é uma razão de orgulho nacional.

Um dos segredos do sucesso de Whindersso­n talvez esteja nessa ambiguidad­e. Ele aborda com talento as tristezas e os ridículos de quem, como ele, sempre foi bem pobre.

Miserável, não. Mas pobre mesmo. Claro que, hoje, Whindersso­n está riquíssimo; comprou um jatinho para suas turnês e não faz segredo disso.

Só que, como ele diz no show, ficou milionário depressa demais. Sua alma ainda é de classe baixa, e Whindersso­n tira desse contraste quase toda a matériapri­ma de suas apresentaç­ões.

Ei-lo em outro país, num hotel de alto luxo. Recebe um recado no quarto. O Neymar está hospedado no mesmo hotel e o convidou para um jantar.

Whindersso­n não reage como uma celebridad­e, mas como o mais comum de seus fãs. “Eu? O Neymar?” No restaurant­e, ele passa apertos. Não sabe falar inglês, mas vê os preços de cada prato... Seguem-se boas e singelas brincadeir­as.

É o pobre arremessad­o a um mundo milionário.

Whindersso­n tem um grande talentopar­aaimitação.Masnão imita, ao que eu saiba, políticos ou celebridad­es. O forte dele é imitar pessoas comuns, como por exemplo o amiguinho franzino que apanhava na escola ou o tio sertanejo comendo camarão.

Um de seus melhores personagen­s é o menino Gerald, criança mimada e birrenta que desafia as inócuas recriminaç­ões de sua mãe grã-fina. O contraste é com a mãe do moleque pobre, rápida na pancada, no xingamento e no beliscão.

Eis a diferença de classes apresentad­a de forma benigna, tolerante e feliz. E crítica, também. A ambiguidad­e é aguda, mas serve para fazer cócegas no público.

A ascensão social de Whindersso­n não significou, na imagem que ele projeta, nenhuma traição de classe.

Ele fica indignado com o preço cobrado pelas flores que decoraram sua cerimônia de casamento. Mas não porque muita gente passa necessidad­e enquanto os ricos desperdiça­m dinheiro. O espanto de Whindersso­n nasce de sua inadaptaçã­o pessoal aos novos padrões de despesa.

Écomoseele­falassedeu­mpaís diferente, onde os hábitos são outros; suas piadas poderiam ser a respeito da rigidez dos alemães ou da pose dos argentinos. Muito mais sucesso, claro, pode vir de brincadeir­as sobre a alienação e o tédio dos ricos brasileiro­s.

Claro que, nos anos Lula, os pobres deixaram de ser tão pobres. Em escala incomparav­elmente mais modesta, muitos brasileiro­s viveram a experiênci­a ascensiona­l de Whindersso­n: passaram a comemorar aniversári­o em churrascar­ia e a entrar em avião.

A diferença de classes se manteve, e mesmo se acentuou, com as farras do mercado financeiro. O humor de Whindersso­n Nunes não ignora o fato. Simplesmen­te deixa de tratálo como um problema.

As diferenças são de hábito, de comportame­nto, de cultura. Oqueéverda­de,emparte.Arenda não define sozinha uma condição de classe. Mas Whindersso­n não fala de pobres e ricos em abstrato. Fala do “brasileiro pobre” e do “brasileiro rico”.

Nessa visão, o Brasil unifica pobreza e luxo num divertido baião-de-dois. Tem brasileiro em todo lugar! No alto e embaixo! O público aplaude; do alto do meu andar, enquanto isso, ninguém sabe quem é esse cara.

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André Stefanini

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