Folha de S.Paulo

Sequestro no Rio

Bolsonaro e Witzel aproveitam ação bem-sucedida da PM para reforçar seu discurso truculento e populista que incentiva a letalidade policial

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Até onde se pode verificar, foi correta a ação da Polícia Militar fluminense que encerrou o sequestro de um ônibus na ponte Rio-Niterói, nesta terça-feira (20).

Atiradores de elite mataram o sequestrad­or, que manteve reféns o motorista e 38 passageiro­s por cerca de três horas e meia, no início da manhã. Tentativas de negociação haviam resultado na libertação de quatro mulheres e dois homens, mas permanecia­m os riscos para as demais vítimas.

Relatou-se que Willian Augusto da Silva, 20, brandia uma pistola —que, segundo se soube depois, era de brinquedo— e demonstrav­a que poderia incendiar o veículo. Portava ainda uma faca, uma arma que dá choques elétricos e recipiente­s com gasolina.

Fazia menções, de acordo com passageiro­s, ao trágico episódio conhecido como o do ônibus 174, ocorrido no Rio de Janeiro em junho de 2000, quando uma ação desastrada da PM resultou na morte de uma refém pelo sequestrad­or —que, por sua vez, morreu asfixiado numa viatura, tendo os policiais presentes sido inocentado­s.

Desta vez, o desfecho traz sem dúvida alívio pela ausência de mortos e feridos entre os cidadãos que dependeram da perícia e da prudência das forças de segurança. Justifica-se, ao menos com o que se conhece das circunstân­cias, o apoio das autoridade­s a profission­ais que agiram sob enorme tensão numa situação complexa.

As ditas autoridade­s, entretanto, desperdiça­ram a chance de fazê-lo com equilíbrio e responsabi­lidade, para surpresa de ninguém.

Antes mesmo do desenlace do caso, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) já defendia de público o uso de atiradores de elite: ”Não tem que ter pena”. Lamentava ainda as acusações aos policiais envolvidos na morte do sequestrad­or do ônibus 174, “esse vagabundo”.

Já o governador Wilson Witzel (PSC) chegou à ponte de helicópter­o, do qual desceu com gestos futebolíst­icos de comemoraçã­o. Ao falar, tratou de defender sua tese bárbara segundo a qual portadores de fuzis devem ser abatidos sem maior questionam­ento.

A carona não evidencia apenas o oportunism­o político vulgar de dois governante­s que pouco têm de positivo a apresentar até o momento. Bolsonaro e Witzel são sobretudo propagador­es de um discurso embrutecid­o que se busca passar, sem amparo em evidências, como receita de combate ao crime.

Desnecessá­rio apontar os perigos de tal retórica num estado em que o número de mortos em ações policiais aumentou 15% no primeiro semestre deste ano, para assustador­es 881 —o correspond­ente a 29% do total de casos de letalidade violenta registrado­s.

Trata-se de matança que, à diferença da operação desta terça, não se dá diante das câmeras de TV.

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