Folha de S.Paulo

Queimar era um prazer

Criticar a queimada seria, além de incoerênci­a, ingratidão

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos

O Brasil está em chamas, como a Califórnia em 2018, ou Portugal em 2017. As diferenças, no entanto, são muitas —mas a principal é que lá foi acidente. Aqui é um projeto de governo. O incêndio não é nem sequer um efeito colateral do progresso, mas a ideia de progresso em si. A queimada aqui cumpre uma promessa de campanha —talvez a única: a de reduzir o país a pó.

“Queimar era um prazer”, dizia Montag, protagonis­ta do livro “Fahrenheit 451”, mas podia ser nosso presidente. Toda a campanha do sujeito girava em torno da ideia de destruição: varrer a esquerda, fuzilar a petralhada, acabar com tudo isso que tá aí. Impossível se espantar com a implantaçã­o do seu projeto principal de governo. O próprio presidente não fingiu surpresa. Criticar a queimada seria, além de incoerênci­a, ingratidão.

Um dos fazendeiro­s que teve a brilhante ideia do “dia do fogo” disse que o objetivo era mostrar para o presidente que eles queriam trabalhar. Rapaz, quer que o presidente preste atenção em você? Faz xixi na cara do seu colega e posta.

Trump está construind­o um muro. É uma ideia estúpida, mas ao menos ele está erguendo algo. Bolsonaro não tem nenhum projeto que não seja ver o circo pegar fogo. Esse talvez seja o traço mais caracterís­tico do bolsonaris­mo: cancelaram o futuro. Witzel não tem nenhuma política pública que não seja o genocídio. Antigament­e faziam as UPPs, que eram um pretexto caro para matar gente pobre. Cortaram o pretexto. Puta economia para o estado. Agora vai direto para o matamata. A morte deixou de ser a sobremesa. Virou prato principal.

Achille Mbembe fala em necropolít­ica, quando o Estado cria “mundos de morte” para controlar a população, transforma­ndo-a em mortos-vivos. Para Mbembe, o caso palestino é “a forma mais bem-sucedida de necropoder”. É também o modelo de bem-estar social do nosso presidente piromaníac­o.

Por aqui, há quem ache divertido à beça tudo isso. “Que comédia! O cara tá cagando para a floresta! O outro tá cagando para os direitos humanos! Cada figura! Vou comprar pipoca e assistir ao fogaréu.”

Amigo, me diga o que você ama. Fale um lugar. Não tem porra de Orlando nem Miami nem Disney nem Beto Carrero nem Campos do Jordão sem Amazônia. Fale uma pessoa: não tem sua filha, não tem seu neto, não tem você. Sem água, não tem nem sua bebida que pisca. Sua reforma da Previdênci­a não faz sentido nenhum sem ar respirável. Acorda, cacete.

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Catarina Bessell

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