Queimar era um prazer
Criticar a queimada seria, além de incoerência, ingratidão
O Brasil está em chamas, como a Califórnia em 2018, ou Portugal em 2017. As diferenças, no entanto, são muitas —mas a principal é que lá foi acidente. Aqui é um projeto de governo. O incêndio não é nem sequer um efeito colateral do progresso, mas a ideia de progresso em si. A queimada aqui cumpre uma promessa de campanha —talvez a única: a de reduzir o país a pó.
“Queimar era um prazer”, dizia Montag, protagonista do livro “Fahrenheit 451”, mas podia ser nosso presidente. Toda a campanha do sujeito girava em torno da ideia de destruição: varrer a esquerda, fuzilar a petralhada, acabar com tudo isso que tá aí. Impossível se espantar com a implantação do seu projeto principal de governo. O próprio presidente não fingiu surpresa. Criticar a queimada seria, além de incoerência, ingratidão.
Um dos fazendeiros que teve a brilhante ideia do “dia do fogo” disse que o objetivo era mostrar para o presidente que eles queriam trabalhar. Rapaz, quer que o presidente preste atenção em você? Faz xixi na cara do seu colega e posta.
Trump está construindo um muro. É uma ideia estúpida, mas ao menos ele está erguendo algo. Bolsonaro não tem nenhum projeto que não seja ver o circo pegar fogo. Esse talvez seja o traço mais característico do bolsonarismo: cancelaram o futuro. Witzel não tem nenhuma política pública que não seja o genocídio. Antigamente faziam as UPPs, que eram um pretexto caro para matar gente pobre. Cortaram o pretexto. Puta economia para o estado. Agora vai direto para o matamata. A morte deixou de ser a sobremesa. Virou prato principal.
Achille Mbembe fala em necropolítica, quando o Estado cria “mundos de morte” para controlar a população, transformando-a em mortos-vivos. Para Mbembe, o caso palestino é “a forma mais bem-sucedida de necropoder”. É também o modelo de bem-estar social do nosso presidente piromaníaco.
Por aqui, há quem ache divertido à beça tudo isso. “Que comédia! O cara tá cagando para a floresta! O outro tá cagando para os direitos humanos! Cada figura! Vou comprar pipoca e assistir ao fogaréu.”
Amigo, me diga o que você ama. Fale um lugar. Não tem porra de Orlando nem Miami nem Disney nem Beto Carrero nem Campos do Jordão sem Amazônia. Fale uma pessoa: não tem sua filha, não tem seu neto, não tem você. Sem água, não tem nem sua bebida que pisca. Sua reforma da Previdência não faz sentido nenhum sem ar respirável. Acorda, cacete.