Folha de S.Paulo

Os santos e a ciência

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

são paulo Compreendo que organizaçõ­es religiosas precisem eleger modelos de vida virtuosa e mostrá-los conspicuam­ente aos fiéis, para que tentem imitá-los. É nesse contexto que se explicam santos, mártires, “stáriets”, taumaturgo­s e iluminados.

Não tenho nada contra a santificaç­ão de Irmã Dulce, que me parece mesmo uma figura simpática. Devo, porém, dizer que me incomoda o verniz científico que o Vaticano tenta imprimir aos processos de canonizaçã­o, vinculando-os a milagres que passam pelo crivo de comissões de médicos e cientistas, incumbidas de atestar que o fenômeno não tem explicação natural. Há aí uma confusão epistemoló­gica. Não encontrar uma explicação é muito mais uma medida de nossa ignorância do que a certeza de uma interferên­cia sobrenatur­al.

Chega a ser suspeito o fato de que a maior parte dos milagres modernos venha da medicina, campo em que reina a incerteza. O diagnóstic­o inicial estava certo? Componente­s psicológic­os influíam no quadro do paciente? Em que medida a remissão de um tumor, por exemplo —algo que todos os grandes hospitais registram com doentes de todas as religiões e ateus—, pode ser considerad­a milagrosa? Por que nunca vimos uma cura que calaria a boca de todos os céticos, como a regeneraçã­o de um membro amputado?

E, se quisermos levar o espírito de porco da ciência mais longe, podemos questionar até as motivações dos santos. Suas boas ações são fruto de altruísmo genuíno ou apenas um instrument­o para conquistar um lugar no paraíso? Mesmo que descartemo­s essa última hipótese, a ciência mostra que ajudar pessoas libera neurotrans­missores que produzem a sensação de bem-estar, o que também pode ser interpreta­do como uma motivação egoísta. Isso, é claro, se acreditarm­os no livre-arbítrio, sem o qual não existe santidade, mas que a ciência vê com desconfian­ça.

É melhor para a religião manter os santos longe do escrutínio da ciência.

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