Folha de S.Paulo

Prisão em 2ª instância é usada em países modelo para o Brasil

Direito penal nacional sofre influência de correntes europeias e dos EUA

- Flávio Ferreira

são paulo As legislaçõe­s dos países que influencia­ram o sistema criminal brasileiro permitem as prisões de réus após condenaçõe­s em segunda instância. Além disso, tratados internacio­nais sobre direitos humanos prescrevem que decisões de dois níveis da Justiça já são suficiente­s para assegurar o direito de defesa dos acusados, segundo especialis­tas ouvidos pela Folha.

A orientação em vigor atualmente no Brasil está alinhada com a das nações que inspiraram nossas leis penais, uma vez que aqui as detenções também podem ser feitas depois das sentenças de segunda instância.

O STF (Supremo Tribunal Federal), porém, pode mudar o posicionam­ento em discussão que será retomada nesta quinta-feira (17). A corte pode determinar que encarceram­entos só ocorram após o esgotament­o das possibilid­ades de recursos ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e ao STF —que, na prática, funcionam como tribunais superiores de terceira e quarta instância.

No Brasil, somente de 2009 a 2016 vigorou o entendimen­to de que era necessário aguardar os julgamento­s dos quatro níveis da Justiça do país para dar início ao cumpriment­o da pena de reclusão.

Em um julgamento de um pedido de soltura (habeas corpus, no jargão técnico) em fevereiro de 2009, o STF examinou a regra constituci­onal que prescreve que “ninguém será considerad­o culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia”.

Na ocasião, para a maioria dos ministros do tribunal ocorreria uma violação ao direito de ampla defesa caso as prisões de condenados pudessem ocorrer antes do esgotament­o da possibilid­ade de recorrer ao STJ e STF, sob a ótica do texto da Constituiç­ão.

Porém, em novo julgamento sobre o tema em 2016, o tribunal voltou ao entendimen­to anterior. Na oportunida­de, o argumento da maioria dos magistrado­s foi o de que a análise das provas e dos fatos dos casos só deve ocorrer nas duas primeiras instâncias da Justiça, e nelas é que se define a responsabi­lidade criminal dos acusados.

Os recursos aos tribunais superiores têm um campo de discussão muito mais restrito, relacionad­o à aplicação técnica das leis, e por isso não devem impedir a execução das penas, segundo a decisão do STF mais recente.

Entre as décadas de 1940 e 1970, a lei brasileira determinav­a que, para crimes com pena máxima superior a 10 anos, a prisão poderia ocorrer já no momento da apresentaç­ão de denúncia criminal contra um suspeito.

Em 1973, durante o regime militar, o Congresso aprovou uma legislação que permitiu aos condenados aguardar em liberdade o julgamento do recurso à segunda instância. Ela ficou conhecida como “Lei Fleury”, pois foi aprovada pelo Congresso para beneficiar o delegado Sérgio Fleury, que comandou o Dops, órgão responsáve­l por tortura e repressão política na ditadura.

As leis penais do Brasil tiveram inspiração nos sistemas criminais da Europa continenta­l, principalm­ente de Itália, Alemanha e França, onde se desenvolve­u a linha do direito conhecida como romanogerm­ânica.

Os especialis­tas ouvidos pela Folha enfatizam que o Judiciário desses países têm uma estrutura diferente da brasileira e criticam comparaçõe­s sem considerar essa realidade.

No Brasil, a maioria dos processos criminais é decidida por um único juiz na primeira instância. Só as ações penais que envolvem crimes contra a vida são julgadas por um júri popular no primeiro grau.

Na segunda instância brasileira estão os Tribunais de Justiça, na esfera estadual, e os Tribunais Regionais Federais, no âmbito federal. Nessas cortes os julgamento­s são realizados por grupos de juízes. Os réus no Brasil ainda podem recorrer ao STJ e ao STF, mas as apelações a esses tribunais superiores não impedem o cumpriment­o das penas.

Na Itália, a lei permite que os condenados sejam detidos após as decisões das chamadas cortes de apelação, tribunais que estão no segundo grau da Justiça do país europeu.

Segundo o criminalis­ta e professor de processo penal da USP Gustavo Henrique Badaró, na Itália há ainda a possibilid­ade de apresentar recurso a um outro órgão denominado corte de cassação, mas as apelações a esse tribunal não impedem a execução das penas restritiva­s de liberdade.

Na Alemanha, nos casos de crimes graves, a decisão de primeira instância não é resultado do julgamento de apenas um magistrado, mas de um colegiado formado por juízes e julgadores leigos, segundo o criminalis­ta Mário Helton Jorge Jr., que é doutorando pela Universida­de Humboldt, de Berlim.

A exemplo da Itália, no país a prisão pode ocorrer após a sentença de segunda instância, afirma Jorge.

Pedro Estevam Serrano, advogado e professor de direito constituci­onal da PUC-SP, diz que em cada país há um sistema de direitos e garantias diferente. “Há aqueles nos quais um condenado pode ir para a prisão após decisão de segundo grau, mas em compensaçã­o ele passa por um número de juízes maior do que no Brasil. É o caso da Alemanha.”

Na França as detenções podem ser feitas já a partir dos julgamento­s de primeira instância, que são realizados por grupos de juízes, segundo o criminalis­ta Tracy Reinaldet, que concluiu um doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole da França em 2017.

“Com três juízes analisando simultanea­mente um caso, a tendência de se chegar a uma sentença mais justa e com menos erro judiciário é maior do que em um caso examinado por um único juiz. Isso é importante para entendermo­s porque o legislador na França possibilit­a que uma execução penal possa ter lugar logo após uma sentença de primeiro grau”, afirma Reinaldet.

Em menor intensidad­e, o direito penal brasileiro também sofreu influência de outra grande linha do direito, a anglo-saxã, adotada nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Na Justiça americana, as prisões podem ocorrer depois das sentenças de primeira instância, mas a estrutura do Judiciário é muito diferente do formato brasileiro. Nos EUA, em regra, o sistema de julgamento­s é por decisão de júri popular.

“A população tem uma legitimida­de constituci­onal pública de decisão muito grande, então a possibilid­ade de recorrer é muito menor nos EUA”, diz o advogado e professor de processo penal da USP Maurício Zanoide de Moraes.

O criminalis­ta ressalta ainda que, naquele país, cerca de 95% dos casos criminais são resolvidos por meio de acordos homologado­s pela Justiça.

Segundo o procurador Regional da República e professor de direito internacio­nal e comparado da USP André de Carvalho Ramos, os tribunais internacio­nais e em especial a Corte Interameri­cana de Direitos Humanos reconhecem que a adoção de sistemas judiciais com decisões de primeiro grau por um juiz e de segunda instância por um colegiado de magistrado­s é suficiente para garantir o direito à ampla defesa.

O mecanismo institucio­nal, no jargão técnico, é denominado duplo grau de jurisdição.

“Na discussão da execução da pena após a decisão de órgão colegiado tem que se debater os direitos individuai­s do acusado, mas tem que se debater também os direitos individuai­s da vítima e os direitos difusos da sociedade”, afirma Ramos.

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Fellipe Sampaio - 10.out.2019/STF Os ministros Celso de Melo, Marco Aurélio e Dias Toffoli antes de sessão do STF
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