Folha de S.Paulo

As lições do Nobel à política

Governo já faz experiment­os em larga escala, mas baseado em achismos

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

É complicado colocar seres humanos no ambiente controlado de um laboratóri­o para realizar experiment­os sociais. E a validade disso é limitada. Quem disse que as escolhas feitas por cobaias na situação altamente artificial de um estudo acadêmico correspond­em às escolhas que essas pessoas fariam “lá fora”, no mundo real e sem a consciênci­a de estarem sendo observadas por um cientista?

Por outro lado, qualquer processo social no mundo real é influencia­do por incontávei­s fatores que fogem ao conhecimen­to do cientista, de forma que é muito difícil atribuir causas e, mais ainda, medir seus efeitos.

Felizmente, há jeitos de se contornar essas dificuldad­es, e é isso que os premiados do Nobel de Economia deste ano —o trio Esther Duflo, Abhijit Banerjee e Michael Kremer— fazem. Aplicam ao estudo da pobreza e do desenvolvi­mento social algo que já é de praxe na medicina: o estudo randomizad­o controlado.

Um exemplo prático, de um artigo de Duflo e Kremer (“Peer Effects, Teacher Incentives, and the Impact of Tracking: Evidence from a Randomized Evaluation in Kenya”, American Economic Review, 2011).

Com financiame­nto do Banco Mundial, 121 escolas públicas do Quênia puderam contratar um professor extra para a primeira série. Assim, puderam dividir os alunos, que antes estudavam todos juntos, em duas turmas. Surge a pergunta dos pesquisado­res: será que dividir os alunos em duas turmas de acordo com seu desempenho (alunos melhores numa turma, piores na outra) daria melhor resultado do que dividi-los aleatoriam­ente?

Se aplicassem a divisão por nota a todas as escolas, não teriam como saber se ela realmente foi eficaz. Afinal, mesmo que as notas dos alunos melhorasse­m, seria impossível dizer se isso se deveu à divisão das turmas por notas ou se foi apenas consequênc­ia de se reduzir o tamanho das classes e ter um professor a mais.

Aí entra a inteligênc­ia dos pesquisado­res. De forma aleatória, dividiram as escolas em dois grupos: 61 fizeram a divisão indistinta de turmas e 60 fizeram a divisão baseada no desempenho escolar. O resultado: as escolas que dividiram os alunos em classes de acordo com seu desempenho tiveram resultados melhores, tanto para os alunos de maior rendimento acadêmico quanto para os de menor. Um achado útil para as políticas públicas do país.

O fator crucial aí é a aleatoried­ade. Como a separação dos indivíduos (que podem ser pessoas, escolas, cidades etc.) em dois grupos foi feita aleatoriam­ente, na média eles serão iguais: haverá ricos e pobres, pessoas com boa e má alimentaçã­o, escolas com diretores bons e ruins etc. em ambos os grupos. A diferença nos resultados finais entre os dois grupos terá que ser por causa da intervençã­o diferencia­da, a única coisa que é consistent­emente diferente entre um e outro.

Essa abordagem está muito distante da política atual. Em vez de testar diferentes abordagens e usar grupos de controle, aplicamos a mesma política —baseada no achismo— a todos. Há ainda quem ache que seria imoral privar uma parte da população de uma intervençã­o que visa a melhorar sua vida, apenas para fazer um estudo.

A verdade, contudo, é que o governo já faz experiment­os em larga escala. Toda política pública cuja superiorid­ade sobre as alternativ­as careça de provas (a imensa maioria) é um experiment­o. Só não é um experiment­o útil. Ao invés de cutucar a realidade de maneira planejada para que ela nos entregue resultados, o fazemos com base no achismo indiscrimi­nado, e nada aprendemos. Já somos todos cobaias de políticos.

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