Folha de S.Paulo

‘No segundo dia no Brasil, dei meu primeiro beijo’

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Por mal ou por bem, a sociedade síria está se adaptando ao resto do mundo. A gente assistia a séries ocidentais, mas agora a gente se sente vivendo numa série ocidental.

Outro dia voltei a conversar com uma amiga minha da Síria, mas agora não tem mais papo. É tudo muito diferente.

Aqui as coisas mais doidas parecem muito mais lógicas. No meu segundo dia no Brasil, eu entrei num bloco de Carnaval sem saber o que era, sem falar português. Dei o primeiro beijo da minha vida.

A situação na Síria, até quando eu conto para mim mesmo, para amigos, é tão diferente da minha vida atual que parece uma coisa imaginária. Minha sobrinha nasceu na guerra. As primeiras palavras dela não foram “pai” ou “mãe”. Foram: “estão atirando”, “tem bala lá fora”.

Outro dia estava almoçando com um amigo e mostrando fotos da minha casa destruída. Ele não entendia como a gente continuou vivendo naquela casa, mas a gente vivia nela de boa. Agora eu não me enxergo morando naquele lugar.

O poder de adaptação do ser humano é muito forte. Na primeira bomba você acorda com medo, na segunda bomba você fica dormindo.

Eu só tive a sensação de liberdade na Síria umas três vezes, nas manifestaç­ões contra o governo. Mas aqui você pode escolher a roupa que vai vestir, qual trabalho vai fazer… Porque até isso lá é a família que decide. Eu posso ser quem eu quero aqui. É muita liberdade. É assustador e ao mesmo tempo é bem bonito.

Namorei uma brasileira por três anos. Ela é atriz, feminista e me ensinou muito sobre o respeito à mulher. Tento ser o mais mente aberta possível, mas muita coisa não estava nem na minha perspectiv­a: eu não sabia que as piadas que a gente fala eram tão chatas, e ela me explicou por que são chatas. Agradeço a ela, somos amigos até hoje.

Quero manter minha tradição, seguir sendo um homem sírio, mas ao mesmo tempo eu quero ser brasileiro, ir a um churrasco no domingo, sair para uma festa com os amigos. Já ajudei até a compor um samba, já penso em português. Aqui posso manter o lado árabe e fazer crescer meu lado brasileiro.

Professor de idiomas e estudante de engenharia, Hakam Elyoussef, 27, é da Síria e está no Brasil desde 2014

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