Folha de S.Paulo

A constituci­onalização de tudo

Só após os gastos obrigatóri­os pagos é que pensamos nas crianças pobres do Bolsa Família

- Cecilia Machado

Não há dúvidas sobre a importânci­a do investimen­to público nas crianças, garantindo que elas possam exercer seus potenciais produtivos quando crescem. Além de fomentar o desenvolvi­mento da própria criança, esses investimen­tos são positivos também para a sociedade.

Ao se tornarem adultos inseridos na economia, desoneram gastos do governo em saúde, assistênci­a social e segurança pública, permitindo o direcionam­ento de recursos para outros setores, como saneamento, infraestru­tura e tecnologia, num grande círculo virtuoso que potenciali­za ainda mais os investimen­tos iniciais feitos nas crianças.

Se pudéssemos escolher onde alocar o gasto público, investimen­tos em educação, em especial para as crianças em situação de pobreza, deveriam ser as prioridade­s. Nesse sentido, o pacto constituci­onal de 1988 estabelece­u importante­s princípios mínimos e irredutíve­is da ordem social, como a garantia à educação e à assistênci­a.

Mas, ainda que a nossa Constituiç­ão já estabeleça um olhar especial às crianças pobres, é inevitável constatar que o atual texto não é suficiente para garantir os direitos delas.

Prova evidente da negligênci­a que temos com as crianças pobres do país é a recente proposta de emenda constituci­onal (PEC) 133, a PEC paralela da reforma da Previdênci­a, entendida por muitos como a constituci­onalização do programa Bolsa Família.

E por que constituci­onalizar a assistênci­a às crianças pobres? Porque elas são, no momento, beneficiár­ias residuais dos gastos do governo.

Por óbvio, se tudo está constituci­onalizado, acaba sobrando pouco para o que não está. Apenas depois que todos os gastos obrigatóri­os terminam de ser pagos —como os altos salários do funcionali­smo público, incluindo o Judiciário e o Ministério Público, e as crescentes obrigações previdenci­árias—, aí sim pensamos nas crianças pobres do Bolsa Família.

Bonito no papel, o artigo 195-A da PEC, apesar de garantir o reajuste real do benefício, continua deixando as crianças pobres à margem da rede de proteção social.

Os idosos pobres, por exemplo, possuem a garantia constituci­onal de um salário mínimo. As crianças não. E como ampliar gastos em educação, saúde e saneamento, importante­s insumos no desenvolvi­mento das crianças, quando o Orçamento está sufocado?

A verdadeira seguridade social da criança é aquela que libera, e não engessa, recursos públicos para que os investimen­tos possam ser feitos em educação, saúde e assistênci­a, capitaliza­ndo todos os ganhos de escala que a provisão pública pode proporcion­ar.

Nesta reforma da Previdênci­a tivemos importante­s oportunida­des de liberação de recursos, como a inclusão dos estados e municípios na reforma, a equiparaçã­o da aposentado­ria dos professore­s à das demais categorias, a definição de critério de renda objetivo para a concessão do BPC e a igualdade nas idades de aposentado­ria entre homens e mulheres. Optou-se por não mexer nessas questões e remediar a enorme injustiça que se fez com as crianças incluindo o reajuste do Bolsa na Constituiç­ão. Nada mais justo, mas dois erros não fazem um acerto.

Caminhamos para a constituci­onalização de tudo, ainda que a melhor forma de assistir aos vulnerávei­s seja por meio da política pública de forma universal, pensada e executada pelo Estado.

Melhor mesmo seria deixar de fora da Constituiç­ão parâmetros específico­s das remuneraçõ­es do setor público, seguridade­s e assistênci­as, tudo aquilo que engessa o Orçamento público e é passível de batalha judicial.

Na atual reforma da Previdênci­a, gritaram e esperneara­m os professore­s, as mulheres, os militares, os estados e os municípios, os funcionári­os públicos, os idosos, todos a favor de seus interesses. Foram atendidos. As crianças, coitadas, se comportara­m bem demais.

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