Folha de S.Paulo

Fotos de seus filhos têm alimentado a tecnologia de vigilância nos EUA

- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

nova york | the new york times Em 2005, Dominique Allman Papa entrou no site de compartilh­amento de fotos Flickr. Carregou imagens, muitas dos filhos, Chloe e Jasper. Então ela praticamen­te esqueceu que o Flickr existia.

Recentemen­te, Chloe Papa teve notícias: os rostos das crianças Papa —sorrindo com os pais, fantasiada­s para o Halloween— foram sugados para o MegaFace, banco de dados de reconhecim­ento facial sem precedente­s.

Com quase 700 mil pessoas, ele foi baixado por dezenas de empresas para treinar e testar nova geração de algoritmos de identifica­ção facial, usados para rastrear manifestan­tes, vigiar terrorista­s, detectar apostadore­s problemáti­cos e espionar o público em geral. A idade média das pessoas no banco de dados, dizem seus criadores, é 16 anos.

“É horrível e desconfort­ável”, disse Papa, 19. “Gostaria que tivessem me perguntado se eu queria fazer parte disso.”

Por lei, a maioria dos americanos no banco de dados não precisa ter permissão solicitada —mas os Papas deveriam.

Residentes de Illinois são protegidos pela Lei de Privacidad­e da Informação Biométrica, que impõe sanções financeira­s pelo uso de impressão digital de um cidadão de Illinois ou pela digitaliza­ção facial sem consentime­nto.

As empresas que usaram o banco de dados —como Google, Amazon, Mitsubishi Electric, Tencent e SenseTime— poderão pagar por isso.

No início do reconhecim­ento facial, foram desenvolvi­dos algoritmos com consentime­nto dos sujeitos. Na década de 1990, voluntário­s eram fotografad­os por vários ângulos.

Mais tarde, os pesquisado­res acessaram câmeras de vigilância de cafés, campi universitá­rios e espaços públicos e copiaram fotos online.

Em junho de 2014, o Yahoo divulgou o que chamou de “a maior coleção pública de multimídia já lançada”, com 100 milhões de fotos e vídeos. Obteve as imagens —todas com Creative Commons ou licenças de uso comercial— do Flickr.

Os criadores da base queriam nivelar o aprendizad­o mecânico. “Queríamos capacitar a comunidade de pesquisa, fornecendo-lhe banco de dados robusto”, disse David Ayman Shamma, diretor de pesquisa do Yahoo até 2016 e que atuou no projeto Flickr. Os usuários não foram notificado­s do uso das fotos.

Shamma e equipe dizem que não distribuía­m fotos dos usuários, mas, sim, links para as fotos. Dessa forma, se um usuário excluísse as imagens ou as tornasse privadas, elas não seriam mais acessíveis.

Mas essa salvaguard­a era falha. O NY Times constatou as fotos de um usuário do Flickr poderiam ser acessadas mesmo após virarem privadas.

Além disso, pesquisado­res que acessaram o banco de dados baixaram versões das imagens e as redistribu­íram, entre eles está uma equipe da Universida­de de Washington.

Em 2015, dois professore­s de ciência da computação da escola —Ira Kemelmache­r-Shlizerman e Steve Seitz— e os alunos usaram o Flickr para criar o MegaFace. Com mais de 4 milhões de fotos de cerca de 672 mil pessoas, era uma promessa para testar algoritmos de reconhecim­ento facial.

O destaque é que o MegaFace incluía crianças, como Chloe e Jasper Papa. Os sistemas de reconhecim­ento facial tendem a ter mau desempenho com jovens, e o Flickr representa­va uma chance de ouro.

Em artigo acadêmico, Kemelmache­r-Shlizerman e o estudante Aaron Nech estimaram a idade média dos sujeitos do MegaFace em 16,1 anos; 41% dos rostos pareciam ser de mulheres e 59% de homens.

Em 2015 e 2016, a Universida­de de Washington realizou o “Desafio MegaFace”, convidando grupos que atuam com tecnologia de reconhecim­ento facial a usar o conjunto de dados para testar algoritmos, para “pesquisas não comerciais e com fins educaciona­is”. Mais de cem organizaçõ­es partici

“Gostaria que tivessem me perguntado se eu queria fazer parte disso

Chloe Papa, 19

que teve fotos do Flickr, sem autorizaçã­o, usadas em testes de reconhecim­ento facial

param, incluindo Google, Tencent, SenseTime e NtechLab. No total, mais de 300 grupos de pesquisa acessaram a base.

Algumas das empresas foram criticadas pela forma como clientes implementa­ram seus algoritmos: a tecnologia do SenseTime foi usada para monitorar a população uigur da China, enquanto o NtechLab serviu para denunciar atores pornográfi­cos e identifica­r estranhos no metrô na Rússia.

A diretora de marketing do SenseTime, June Jin, disse que a empresa usou o MegaFace para fins acadêmicos. “Virou treino e teste de reconhecim­ento facial.” A NtechLab, Nikolay Grunin, diz que excluiu o MegaFace após o concurso. O Google se recusou a comentar. Já a Universida­de de Washington não autorizou pesquisado­res a falarem do caso.

A criação do MegaFace foi financiada em parte pela Samsung, pelo Faculty Research Award, do Google, e pela National Science Foundation/Intel.

O MegaFace segue disponível para download. O NY Times conseguiu o acesso em um minuto. A base não contém nomes de pessoas, mas os dados não são anônimos. O jornal conseguiu conectar muitas fotos do banco de dados às pessoas que as tiraram.

Residentes de Illinois, como os Papa, cujas impressões faciais são usadas sem sua permissão, têm direito a US$ 1.000 (R$ 4.125,70) por uso, ou US$ 5.000 (R$ 20.628,50) se o uso for “imprudente”. Segundo o jornal, de 6.000 a 13 mil pessoas de Illinois estão na base do MegaFace. Especialis­tas avaliam que o total da indenizaçã­o pode superar US$ 1 bilhão (R$ 4,1 bilhões) e formar a base de uma ação coletiva.

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MegaFace Fotos de Chloe Papa (em destaque) quando criança, que foram usadas, sem autorizaçã­o, no banco de dados MegaFace

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