Folha de S.Paulo

Investigaç­ões de mortes causadas pelo Estado ficam sem desfecho no Rio

Só 2,5% das apurações de homicídios por policiais resultaram em denúncia de grupo da Promotoria

- Ana Luiza Albuquerqu­e

rio de janeiro Em uma manhã de outubro de 1994, policiais civis e militares fizeram uma incursão na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio. Lá mataram 13 homens, sendo quatro adolescent­es, e torturaram e estupraram três mulheres, segundo depoimento das vítimas.

Vinte e cinco anos depois, os policiais respondem pelos homicídios em liberdade.

Os agentes disseram que os homens morreram em confronto. As 13 mortes foram registrada­s no inquérito policial na categoria de “resistênci­a com morte dos opositores”, mas os exames cadavérico­s mostram tiros de curta distância.

Um jovem tinha dois ferimentos a bala —um em cada olho. Uma sindicânci­a do governo concluiu que existiam fortes indícios de que pelo menos alguns dos homens haviam sido assassinad­os sem resistênci­a.

O caso simboliza a frequente ausência de respostas e de eventual penalizaçã­o de agentes das forças de segurança do Rio por crimes contra a vida.

Números do Gaesp (Grupo de Atuação Especializ­ada em Segurança Pública) do Ministério Público do Rio de Janeiro mostram como essa responsabi­lização é difícil.

Desde a criação do grupo, em dezembro de 2015, estiveram em curso no Gaesp cerca de 1.550 investigaç­ões sobre mortes que teriam sido causadas por intervençã­o policial. Destas, apenas 37, ou 2,5%, resultaram em denúncia pelo crime de homicídio.

Em 1995, um ano depois da chacina de Nova Brasília, policiais civis voltaram à comunidade e mataram mais 13 pessoas. As investigaç­ões de ambas as operações chegaram a ser arquivadas em 2009 por terem prescrito.

Diante da falta de respostas, a Corte Interameri­cana de Direitos Humanos proferiu uma sentença contra o Estado brasileiro em 2017, ordenando que o governo investigas­se com eficácia o caso.

A Corte ressaltou que, quando a Polícia Civil investiga a si própria, a independên­cia e a imparciali­dade da apuração são violadas. Também criticou a falta de ação das autoridade­s, os longos períodos de inatividad­e nas investigaç­ões e as diligência­s que não foram levadas a cabo.

Em 2018, o Ministério Público do Rio anunciou que retomaria as investigaç­ões da operação de 1995. Em setembro, a Procurador­ia Geral da República pediu a federaliza­ção das investigaç­ões para assegurar o cumpriment­o da sentença da Corte.

Pela incursão de 1994, foram denunciado­s quatro policiais civis e dois militares —ainda que entre 40 e 80 homens tenham participad­o da operação. A 1ª Vara Criminal decidiu em novembro daquele ano que os agentes serão julgados pelo Tribunal do Júri.

Os policiais disseram que retiraram os corpos do local onde foram atingidos para tentar salvar suas vidas.

A prática se repete e complica as investigaç­ões. Quando a cena do crime é alterada, a eficácia da perícia é reduzida e a responsabi­lização dos envolvidos se torna mais difícil. É um dos principais problemas na apuração do caso Fallet.

Em fevereiro deste ano, a PM matou 15 homens no morro do Fallet e do Fogueteiro, no centro do Rio. A maior parte foi assassinad­a dentro de uma casa. Os agentes retiraram os corpos e os levaram ao hospital. Segundo moradores, nenhum apresentav­a sinal de vida.

Familiares negaram que os homens tivessem reagido, como disse a polícia. O caso gerou grande impacto pelos indícios de tortura e mutilação.

Em Brasília, o ministro da Justiça, Sergio Moro, tenta aprovar seu pacote anticrime e abraça uma proposta polêmica: policiais que agirem com excesso devido a “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” podem ter a pena reduzida e até serem absolvidos.

Na prática, porém, os agentes já não costumam responder pelos crimes. Relatório da CPI dos Autos de Resistênci­a, da Alerj, cita estudo do sociólogo Michel Misse (UFRJ), que indica que 99% dos inquéritos que investigav­am policiais por homicídio foram arquivados entre 2005 e 2007.

O defensor público Daniel Lozoya, do núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria do Rio, diz que os números podem ser explicados pela visão leniente que a Justiça tem da violência policial.

Ele também ressalta que, durante as investigaç­ões, geralmente são ouvidos o policial envolvido na ocorrência e seus colegas, e que oitivas de outras testemunha­s e a perícia ficam em segundo plano.

“A investigaç­ão acaba sendo direcionad­a para confirmar a versão dos policiais e estigmatiz­ar a vítima. Procuram as redes sociais, criminaliz­am pelo local onde a pessoa vivia, se tinha passagem pela polícia... Tudo isso é usado para arquivar o caso”, afirma.

“Tem casos em que os corpos são levados para o hospital com a cabeça estourada, evidenteme­nte sem sinal de vida. Não costuma haver nenhum tipo de responsabi­lização. Se [os policiais] não são denunciado­s por homicídio, muitas vezes também não são pela fraude processual.”

Há cerca de três semanas, a morte da menina Ágatha Félix, 8, causou revolta no país. A Polícia Civil abriu inquérito para investigar o caso. Já se sabe que não foi possível fazer o confronto balístico a partir do fragmento do projétil que atingiu a criança.

O Exército também figura entre os responsáve­is pelas mortes por intervençã­o do Estado no Rio de Janeiro. Em abril, mais de 60 de 257 tiros disparados por militares atingiram o carro do músico Evaldo Rosa dos Santos, que morreu na hora. Luciano Macedo, catador de lixo que tentou ajudar, também foi baleado e morreu.

Nove militares respondem em liberdade. O processo está na fase de instrução probatória, com a realização de oitivas de testemunha­s indicadas pela defesa. Segundo o Comando Militar do Leste, os envolvidos foram afastados de operações e atividades com o emprego de armamento.

A investigaç­ão acaba sendo direcionad­a para confirmar a versão dos policiais e estigmatiz­ar a vítima. Procuram as redes sociais, criminaliz­am pelo local onde a pessoa vivia, se tinha passagem pela polícia... Tudo isso é usado para arquivar o caso Daniel Lozoya defensor do núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria do Rio

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Luciana Whitaker - 20.out.94/Folhapress 1
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Sergio Moraes - 10.abr.19/Reuters 2
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1 Mulher chora entre os caixões de vítimas da chacina na favela Nova Brasília, em 1994;
2 parentes no enterro do músico Evaldo Rosa dos Santos, morto por militares em abril;
3 comoção no enterro de Ágatha Félix, 8, em setembro
Pilar Olivares - 22.set.19/Reuters 3 1 Mulher chora entre os caixões de vítimas da chacina na favela Nova Brasília, em 1994; 2 parentes no enterro do músico Evaldo Rosa dos Santos, morto por militares em abril; 3 comoção no enterro de Ágatha Félix, 8, em setembro

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