Folha de S.Paulo

Querem proibir as pessoas trans de buscar um tipo de vida digno

Primeira mulher trans a jogar na Superliga de vôlei tenta barrar projeto de lei que limita atuação de transgêner­os no esporte em SP

- Carlos Petrocilo e João Gabriel

Tifanny Abreu, 34, primeira jogadora transexual na Superliga feminina de vôlei, sabe que não tem uma longa carreira pela frente. Por isso, ela divide atenções entre o Bauru, clube que defende, e a Assembleia Legislativ­a do Estado de São Paulo (Alesp).

Na última terça (8), ela foi para a Assembleia tentar barrar o projeto de lei que limita a atuação de atletas transgêner­o no esporte paulista.

A proposta do deputado Altair Moraes (Republican­os) estabelece que o sexo biológico seja o único critério para definir se um atleta deve competir na categoria feminina ou masculina. Se aprovada, mulheres trans só poderão competir entre homens, e homens trans, entre mulheres.

“Querem nos proibir de estar no mercado de trabalho e buscar outro tipo de vida digno, como queríamos”, diz.

Tifanny ganhou notoriedad­e ao estrear na Superliga feminina pelo Bauru, no final de 2017. Com o destaque na competição, passou a sofrer críticas tanto de pessoas envolvidas com o esporte, como técnicos e ex-jogadoras, quanto de políticos conservado­res.

A atuação da jogadora no país é avalizada pela Confederaç­ão Brasileira de Vôlei (CBV), que segue os critérios estabeleci­dos pelo COI (Comitê Olímpico Internacio­nal) para atuação de atletas trans.

Para competir na categoria feminina, as mulheres trans precisam passar por terapias hormonais e realizar exames regulares que comprovem nível de testostero­na abaixo de 10 nmol/L de sangue.

Caso a lei em discussão seja aprovada, você teme pelo fim da sua carreira?

Não vai mudar em nada a minha vida, não existe time de vôlei só em São Paulo e posso jogar em qualquer lugar do mundo. Eu pretendo jogar no Brasil até o ano que vem e [depois] volto para a Europa. Se [a lei] for aprovada, só [entrará em vigor] depois que acabar a Superliga [o torneio vai de novembro a abril]. Estou aqui [na Alesp] lutando por crianças e adolescent­es trans, que têm o sonho de ser cantor, ator, repórter ou atleta profission­al. Não perco mais o meu sono, como já cheguei a perder, porque esse homem [Altair Moraes] só quer ganhar fama. Mas a justiça de Deus não falha. Ele vai pagar, e eu vou estar na Europa, bonitinha, batendo palma.

Como outros atletas trans e a comunidade esportiva em geral veem essa lei?

Não existem atletas trans no Brasil. As atletas [de vôlei em geral] estão pasmas com tanta falta de caráter. Nós estamos perplexas, ainda mais por entrar em regime de urgência [na tramitação da Casa], sendo que urgência no estado deve ser educação, saúde e segurança pública. A urgência é parar as pessoas trans no esporte? A comunidade esportiva, no geral, só se preocupa com o COI, que está acima das confederaç­ões. O COI determina, e os outros seguem. Essa lei vai contra decisão do COI, e com qual embasament­o?

O projeto afirma que o nível de testostero­na entre homens e mulheres é bem diferente...

Não tem uma pesquisa. Ele simplesmen­te se juntou com a [ex-jogadora de vôlei] Ana Paula e fez isso. Mas não tem embasament­o. Em 2016, o COI decidiu as diretrizes e, então, [disse] que não necessitav­a cirurgia de sexo [cirurgia de redesignaç­ão sexual], era só a testostero­na. Fiz [também] a cirurgia, e minha testostero­na nunca vai subir porque não tenho produção.

O deputado diz que fez o projeto baseado em sua experiênci­a de ‘quase 40 anos como faixa-preta de karatê’.

Pergunta se ele lutou contra algum homem trans? Qual a vivência, qual o contato em uma luta para saber se a força é igual, maior ou menor? Ele compara Michael Phelps com Joanna Maranhão. O Michael Jordan com a Hortência. Giba com Sheilla. Não se compara homem com mulher. Estamos falando de mulheres trans e homens trans. É só pegar os meus pontos da Superliga e comparar com as outras jogadoras, vai estar tudo igual. Isso ele não faz, porque sabe que vai ser inconclusi­vo para ele.

O que o projeto significa em um dos países onde, segundo a ONG Transgende­r Europe, há mais crimes contra a população LGBT?

Alimenta o ódio, proíbe as pessoas de trabalhar e obriga a ir para a prostituiç­ão, onde tem muito mais risco de assassinat­os. Querem nos proibir de estar no mercado de trabalho e buscar outro tipo de vida digno, como queríamos. Não que as meninas na prostituiç­ão deixem de ser dignas. Algumas gostam e, se gostam, têm esse direito. Mas a maioria está ali porque não tem outra opção.

Como você vê as pautas trans e LGBT na política brasileira?

Pouco a pouco estamos conseguind­o espaço. A Erica [Malunguinh­o, do PSOL, primeira deputada trans eleita em São Paulo] está aqui na Alesp, mas enfrenta várias resistênci­as. Assim como eu enfrento, outras mulheres e homens trans enfrentam no mercado de trabalho. É difícil viver em um país onde você tenta ser digna, mas um político tira a sua dignidade.

O projeto cita incorretam­ente que você foi eleita a melhor jogadora do país em 2018. Acredita que deveria ter sido eleita a melhor do Brasil ou ter sido chamada para a seleção?

Não é injustiça. Até quando falaram de seleção, meus números estavam abaixo dos de outras atletas. Como vou ganhar uma coisa que não fiz por merecer? Eu ser eleita a melhor atleta de um jogo é uma coisa, cada dia uma está melhor na partida. Mas para ser a melhor da Superliga é preciso de uma regularida­de muito grande, e eu não tive. Eu fui, sim, a melhor do Brasil nas redes sociais pelos transfóbic­os e homofóbico­s, que espalharam que a melhor jogadora era homem. Fake news.

Você já foi criticada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Sente-se ameaçada por ele?

Vivemos em um governo de deuses. Tem Deus na boca e não no coração. Fazem o que querem, como querem e da forma que querem. Estão afundando nosso país. Quando entrou [o novo presidente], rezamos para dar certo, mas estamos vendo que não é isso que acontece. São hipócritas.

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