Ocupação em SP é exaltada como modelo social na Bienal de Chicago
Evento nos Estados Unidos discute a crise da moradia e propõe papel mais ativo e político à figura do arquiteto
chicago Uma protagonista estava ausente. Carmen Silva, líder do MSTC, o Movimento Sem Teto do Centro, não pôde comparecer à abertura da Bienal de Arquitetura de Chicago no último dia 19.
Um mandado de prisão expedido contra ela no Brasil impediu seu comparecimento. Porém, o texto curatorial do catálogo o evento apresenta Carmen como uma das pensadoras urbanas mais relevantes dos dias atuais.
Caracteriza as iniciativas do MSTC como “atos de cuidado que apoiam diretamente o direito humano fundamental de moradia e acesso a oportunidades de trabalho, cultura e educação”. No Chicago Cultural Center, sede principal da Bienal, uma sala é dedicada aos princípios do movimento e às transformações arquitetônicas na Ocupação Nove de Julho, no centro de São Paulo.
Foi concedido habeas corpus a Carmen Silva no começo de outubro, mas a curadoria da Bienal de Chicago informou que espera “o fim da criminalização do MSTC, que é uma das experiências em habitação social mais importantes do mundo”.
Intitulada “... and other such stories” (e outras histórias), a terceira edição da Bienal de Chicago é capitaneada por um trio na curadoria —Yesomi Umolu e Sepake Angiama, mulheres negras com trajetória de pesquisas desenvolvidas em diferentes continentes, junto de um brasileiro.
Paulo Tavares, 39, construiu sua carreira no exterior. No Centre for Research Architecture da Universidade Goldsmiths de Londres, fez mestrado, doutorado, deu aulas e foi coordenador. Foi cofundador da agência de pesquisa Forensic Architecture e professor nas universidades de Quito, Cornell, Princeton e está, hoje, na UnB, em Brasília.
Sua trajetória pedagógica e de pesquisa ganha voz ativa nesta Bienal ao “pensar arquitetura como instrumento de advocacia”. Investigando os direitos dos cidadãos, quatro metrópoles ganharam destaque na preparação da mostra: São Paulo, Johannesburgo, Vancouver e a própria Chicago.
A cidade sede da Bienal é célebre por sua arquitetura moderna —Louis Sullivan, com o auxílio do elevador, lá inventou o edifício em altura, Frank Lloyd Wright reconfigurou a relação entre espaços internos das casas, Mies van der Rohe criou os magníficos primeiros arranha-céus de vidro.
Contudo, o viés arquitetônico de Chicago que interessa aos curadores é seu processo de urbanização. Especialmente o que Tavares nomeia como “narrativas apagadas”.
Já no hall de entrada da Bienal, há um manifesto reconhecendo que a fundação da cidade esteve ligada ao deslocamento violento dos povos indígenas que tinham aquele território à beira do lago Michigan como ponto de encontro.
Também é questionada a relação entre crescimento da cidade e natureza. A exploração dos recursos naturais esteve na origem da história de Chicago e em milhares de cidades. Este extrativismo mantém-se como alicerce econômico, como mostra o trabalho da artista Carolina Caycedo, destacando a transformação geográfica de lugares que sofreram rompimentos de barragens, como Brumadinho.
Por ter sido centro de passagem de várias rotas de comércio e da conquista do oeste americano, Chicago teve sua população constituída por imigrantes de todo o mundo e migrantes afro-americanos dos estados do sul.
A chamada South Side, região da cidade com população majoritariamente negra, é apresentada na Bienal pelo artista Theaster Gates. Por meio de documentos e filme em preto e branco, vemos imagens de quarteirões com lotes vazios e casas deterioradas, mas as músicas com ritmo gospel e discursos políticos manifestam uma vitalidade de resistência ao racismo que ainda existe no cotidiano.
A recém-eleita Lori Lightfoot, primeira prefeita negra e assumidamente lésbica de Chicago, afirmou na abertura que a Bienal “não é uma conversa de centro de cidade, mas deve incorporar as comunidades mais pobres ao redor”.
Assim, os visitantes são incitados a visitarem sedes paralelas, como uma escola desativada na South Side. No piso do pátio, a urbanista Paola Aguirre (Borderless Studio) fez um mapa do município de Chicago apontando os colégios públicos privatizados e em seguida fechados nos últimos 20 anos.
O debate sobre habitação social é alicerçado na figura de Martin Luther King Jr. O líder pelos direitos civis morou por seis meses em Chicago para participar de um movimento local contra a segregação racial no programa público de conjuntos habitacionais.
No campo da moradia, o Brasil volta a ter destaque com o Usina (mutirões de construção) e o Fica (um fundo imobiliário que debate o que é ser um “proprietário ético” ao adquirir imóveis para alugar a preços e condições contratuais justas).
Outra paralela da Bienal é o Museu Nacional da Habitação Pública, em construção. Para sua diretora, Lisa Lee, há uma crise de moradia severa no mundo, mas “o que está sob ataque é a ideia de esfera pública”.
A Bienal de Chicago proporciona mais que protestos: oferece pesquisas consistentes. Enquanto bienais de arquitetura costumam trazer projetos arquitetônicos em sentido estrito com pretensas boas intensões para o futuro, os participantes desta mostra estão entrando com fundamentação no debate público presente.
Os curadores se sintonizam a um espírito de época na qual se busca a reparação histórica a diversos problemas nos alicerces da humanidade, como questões raciais, ecológicas, de gênero e indígenas.
Sem grifes e “starchitects”, esta é uma exposição com relevância. Esta Bienal fortalece uma mudança do papel do arquiteto hoje: mais pesquisador e menos desenhista, mais proativo e menos prestador de serviços. A arquitetura na próxima década será relevante na concepção de novas instituições e formas políticas.