Folha de S.Paulo

Autor unia memória, senso de humor e doses de afronta

- Arthur Nestrovski Diretor artístico da Osesp. Editou e traduziu ‘A Angústia da Influência’, de Bloom, além de ensaios do crítico publicados na Folha entre 1992 e 1999

Antes de se tornar um autor best-seller, por obras como “O Livro de Jó” (1990) e “O Cânone Ocidental” (1994), o próprio Harold Bloom costumava dizer que, independen­temente do que mais fizesse, seria lembrado, afinal, por um único livro: “A Angústia da Influência”.

Escrito em menos de uma semana, em 1973, o pequeno tratado sobre a tortuosa relação entre autores que se sucedem uns aos outros viria a ser traduzido para mais de quatro dezenas de idiomas e carrega hoje a distinção de um clássico da teoria literária.

O livro foi o primeiro de uma “tetralogia da influência”, que está por trás de quase tudo o que ele escreveu —seja sobre literatura, seja sobre política e religião, entre outros assuntos; seja nas dezenas de livros autorais, seja nas centenas de outros livros que organizou, seja ainda nas resenhas, textos curtos e entrevista­s que produziu com energia intelectua­l única.

Isso sem falar nas lendárias aulas, na Universida­de Yale e também (por alguns anos) na Universida­de de Nova York. Bloom era uma força da natureza, conjugando memória verbal sobre-humana com enorme senso de humor e iguais doses de afronta.

Resumida ao essencial, “A Angústia da Influência” descreve, em termos tirados da psicanális­e e da cabala judaica, a relação entre o “poeta forte” e o “efebo” que lhe segue. Em sua teoria, todo autor vem de outro autor, e o novo poeta só se torna quem é quando tem força para deixar escutar a voz do precursor na sua própria voz, sem se deixar dominar por ela. O processo pode levar tempo. E tende a ser reprimido, como as tramas familiares na psicanális­e freudiana.

A teoria se aplica não só à literatura —é uma teoria da existência. E a influência dessa teoria seria grande e variada.

Inspirou diretament­e a peça “Rancor” (1993), de Otavio Frias Filho —que, além de dramaturgo, foi diretor de Redação da Folha—, para ficar neste exemplo próximo. A peça traduz as agruras da influência para o campo do teatro, confundind­o bastidores e cena. Bloom soube da peça, na época, e se divertiu com a ideia. Não muito depois, viria a se tornar colaborado­r do caderno Mais!, desta Folha.

Um conto famoso do escritor argentino Jorge Luis Borges imagina um homem, “Funes, el Memorioso”, capaz de lembrar de absolutame­nte tudo o que vive, e os terrores dessa memória total.

Para os que o conheceram, Bloom, como leitor, parecia um Funes. Seus críticos, que não eram poucos, acusavam a teoria de só fazer sentido para um leitor assim, capaz de ouvir ecos e acentos de toda a literatura a cada novo texto.

Parece menos uma crítica do que involuntár­ia expressão de apreço, numa ironia tipicament­e “bloomiana”. Mas falta aí o reconhecim­ento da dimensão literária e humana da sua escrita. Raros autores foram capazes de escrever com semelhante verve sobre tantas obras e tantos assuntos, e com tamanho gosto.

A prosa de Bloom é um influxo de vida. Só pode ser comparada a seu talento de orador, capaz de falar de improviso por mais de uma hora como se estivesse lendo um texto, citando longos poemas, sem consultar uma única página.

Vai daí também sua pouca paciência com os rumos da crítica literária, que há muito se abriu para outras áreas, dos estudos culturais ao feminismo. Para ele, os estudos literários correm risco de extinção, mas o sucesso de sua própria obra, com públicos hoje que se multiplica­m para muito além dos foros de especialis­tas, parece eloquente prova em contrário.

A crítica não vai acabar porque a literatura não vai acabar. E a crítica, com autores como Bloom, se confunde com a própria literatura.

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