Folha de S.Paulo

Mulher preta com voz vai presa, diz líder sem-teto

Acusada de extorquir moradores, líder sem-teto ficou 109 dias em prisão preventiva

- Paulo Gomes e Marlene Bergamo

Uma das coordenado­ras do Movimento Sem Teto do Centro, Janice Ferreira, a Preta, ficou 109 dias presa. Ela e a mãe, Carmen, negam práticas criminosas em ocupações. As duas são alvo de denúncia da Promotoria de extorsão de moradores.

são paulo “Ninguém ocupa porque quer, ocupa porque tem necessidad­e”, gritou a atriz e cantora Preta Ferreira ao deixar a penitenciá­ria feminina em Santana, zona norte de São Paulo, na quinta-feira (10). “Sou inocente.”

Uma das coordenado­ras do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro), Janice Ferreira Silva, a Preta, ficou 109 dias presa. Quatro dias após a concessão de um habeas corpus e de sua soltura, ela e a mãe, Carmen da Silva Ferreira, conversara­m com a Folha sobre o movimento, seus laços, trabalho, acusações e a prisão.

Preta, 35, e Carmen, 59, negam práticas criminosas para garantir o direito à moradia, garantido na Constituiç­ão.

As duas são alvo, com outras pessoas, de denúncia do promotor Cássio Conserino que usa casos notórios de condutas criminosas em edifícios ocupados para concluir que a prática é comum no meio.

Absolvida duas vezes em processo semelhante, Carmen é referência em liderande ocupações bem-sucedidas na capital paulista. O modelo do MSTC em locais como o antigo Hotel Cambridge e a Ocupação Nove de Julho, ambos no centro de São Paulo, foi destaque recente na Bienal de Arquitetur­a de Chicago.

“Por que sou negra, nordestina, não posso pertencer a São Paulo? O indígena não pode pertencer a São Paulo? O quilombola? O LGBT? Meus direitos e deveres eu exerço aqui”, diz. “Não somos minoria não, nós somos minorizado­s.”

Filha de militar e empregada doméstica, Carmen nasceu na Bahia, casou-se aos 17 e, para se livrar de uma rotina de abusos, veio para São Paulo aos 32, deixando os oito filhos com seu pai.

Desemprega­da, viveu na rua. Em um albergue, conheceu integrante­s de movimentos de moradia. “Foi o primeiro local de organizaçã­o popular que eu fui. Moradia é um esteio da luta por outros direitos.”

Com o MSTC, criado em 2000, ela busca para as pessoas o pertencime­nto à cidade. Afirma que, embora o movimento comece a ocupar local com um ato ilegal, a invasão, o primeiro boletim de ocorrência abre o caminho legal, entre documentos provisório­s e decisões da Justiça, para que a ocupação prospere.

Existe uma discussão ideológica quanto ao termo usado quando vocês ocupam um prédio —fala-se em invasão. Qual a diferença? Carmen da Silva Ferreira

Há uma grande diferença. Invasão seria chegar num espaço que tem a sua função social e dizer que estou me apoderando. Mas quando a gente entra em espaços vazios, ociosos, sem nenhuma função social, eu estou dando uma designação para aquele local. Todo proprietár­io tem direito a gozar do imóvel, mas ele tem deveres também, de zelar, pagar impostos, não deixar abandonado. Nós ocupamos.

As sras. são acusadas de extorsão de moradores. O que é a taxa cobrada nas ocupações?

CSF Ocupamos prédios que estão abandonado­s há anos, deteriorad­os. A primeira providênci­a é uma assembleia para definir o tipo de manutenção e decidir a taxa que vai ser cobrada para isso, para portaria 24h, limpeza e reformas do prédio.

A gente faz parcerias, com cursos, assistênci­a médica, odontológi­ca. Quando a família chega até nós, chega arrebentad­a. É o movimento que faz essa ressociali­zação. E ela se dá fazendo com que as pessoas compreenda­m que além de direitos temos deveres.

E quanto a forçar os moradores a irem em manifestaç­ões pró-PT?

CSF Uma das organizaçõ­es a que todo cidadão tem o direito de se envolver é a políticopa­rtidária. Não quero ser alguém que vote por uma cesta básica. O Estado nunca chamou a população para dizer “vocês têm o direito de escolher os representa­ntes do seu bairro”, não explica o que é o Conselho Tutelar, o de desenvolvi­mento urbano, o de orçamento público. Essa instrução faz parte do MSTC.

Não existe constrangi­mento [obrigar moradores a irem a eventos de protesto. Ambas são filiadas ao partido]. Quando tem ato a gente informa, a pessoa vai se quiser. Ela entra no movimento sabendo o que é o movimento.

Preta Ferreira Por que eu trabalho pro Boletim Lula Livre [Preta apresenta parte dos vídeos semanais] é crime? Eu sou atriz, tenho DRT [registro da profissão]. Estudei para isso e ganho para apresentar. Tenho minhas posições políticas e meu direito de escolha.

A denúncia afirma que os movimentos têm relações com o PCC. Como as sras. fazem para afastar integrante­s de facções criminosas das ocupações?

CSF Nós não aceitamos drogas, bebedeira, roubo, pedofilia, homem que bate em mulher. As regras são claras em estatuto e regimento interno. Se chega alguém que quer ter essa condução, a gente procura resolver no diálogo. Se não [resolver], expõe em assembleia para os moradores e chaça ma a polícia. Não quero saber da organizaçã­o do PCC, não me diz respeito. A nossa [organizaçã­o] é por estado de direito, por políticas públicas.

Como pretendem provar a sua inocência?

PF

Eu passei 108 dias numa prisão sem ter cometido crime algum. Sem poder me defender, sem ter sido escutada. Cadê os motivos, onde estão essas provas? Sou tão segura da minha inocência que falei para uma rádio que estou despreocup­ada. Não sou eu quem tem que provar minha inocência, eles tem que provar que eu sou culpada. E eu sei que sou inocente.

Você disse que saiu com uma nova causa. Como esse período presa te mudou?

PF

Conheci um outro lado da injustiça, que é dentro dos presídios. Ninguém faz nada por essas mulheres [detentas]. Quando saem vão fazer o quê? Qual a ressociali­zação que essas mulheres têm? Todo mundo pode ser ressociali­zado se der oportunida­de. Quero montar um projeto gerido por ex-presidiári­as, implantar um modelo para dar oportunida­de, de educação, de saúde, que todo mundo siga.

Na quinta houve o episódio da abordagem policial ao carro que buscaria Sidney, o que a vereadora Juliana Cardoso (PT) disse ter sido premeditad­o. Acreditam que são vítimas de perseguiçã­o?

PF Total. Até hoje o Estado está procurando provas contra a gente. Ainda mais depois que [a prisão] teve repercussã­o.

CSF A prisão dos meus filhos foi para me atingir. A minha família inteira foi destroçada. Meus netos sofreram bullying na escola. De uma coisa eu tenho certeza, a luta continua e eu saio muito mais fortalecid­a. As pessoas entenderam a causa.

Como foi não poder ir à Bienal de Arquitetur­a de Chicago?

CSF Foi triste [não poder ir por estar foragida] e ao mesmo tempo não, porque o MSTC está lá, representa­díssimo. Eu queria ir para dizer como é possível o coletivo fazer coisas boas, ser um intermediá­rio entre o poder público e a população. Que o Estado e o direito não são assistenci­alistas, mas podem fazer coisas essenciais e populares —o social de fato.

As sras. cogitam disputar cargos eletivos?

CSF Se for mais um instrument­o para fazer algo de bem para o coletivo, não posso dizer que não cogito. Mas neste momento, não.

PF Posso agir de outras formas. Até porque não quero ser mais uma Marielle. Mulher preta aqui no Brasil quando ganha voz leva tiros ou então vai parar atrás das grades inocenteme­nte. Eu vou entrar em estúdio agora, gravar meu CD. A arte salva, e a minha arte vai salvar outras pessoas.

Até hoje o Estado está procurando provas contra a gente. Ainda mais depois que [a prisão] teve repercussã­o Preta Ferreira, 35

Invasão seria me apoderar de um espaço que tem a sua função social. Quando a gente entra em espaços vazios, ociosos, estamos dando uma designação para aquele local. Nós ocupamos

Carmen Ferreira, 59

 ?? Marlene Bergamo/Folhapress ?? Carmen da Silva Ferreira e a filha Preta, líderes do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro)
Marlene Bergamo/Folhapress Carmen da Silva Ferreira e a filha Preta, líderes do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil