Folha de S.Paulo

O fator ‘Lula Livre’

Bolsonaro criou agenda de antagonism­os, mas não regularizo­u a quitanda do governo

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

Lula deixará a carceragem de Curitiba. Talvez seja logo, talvez demore algumas semanas ou poucos meses. Quando isso acontecer, alterará o medíocre cenário político que se instalou no país. Os problemas de Pindorama são bem maiores que a caixa do PSL e os bate-bocas do senador Major Olimpio chamando os filhos do presidente de “príncipes” e sendo chamado por um deles de “bobo da corte”.

No final do mês completaum ano da vitória de Jair Bolsonaro e de uma espécie de amnésia em relação aos 47 milhões de votos (45%) obtidos pela chapa petista. Nem todo mundo que votou no capitão queria um governo como o que se instalou.

Livre ou, pelo menos, falando à vontade, Lula ocupará um espaço que há um ano seria impensável. Isso porque Bolsonaro conseguiu criar uma agenda de antagonism­os incendiári­a e cosmopolit­a, porém incapaz de regulariza­r a venda de berinjelas pela quitanda do governo.

O capitão alimenta contraried­ades, mas não enfrenta algo que se possa chamar de oposição. Sergio Moro e a Lava Jato não são mais o que foram e o discurso da lei e da ordem desembocou numa constrange­dora necropolít­ica.

Num de seus telefonema­s grampeados, falando com o então vice-presidente Michel Temer, Lula disse que o combate à corrupção, encarnado por Moro, “foi sempre um alimento para golpistas no mundo inteiro, e quem ganhou foi a negação da política”.

Exagerava, mas horas depois Moro explodiu sua nomeação para a chefia da Casa Civil liberando impropriam­ente a gravação de um telefonema de Dilma Rousseff. (Moro determinar­a o fim do grampo às 11h12 daquele dia e o telefonema de Dilma ocorreu às 13h22. A conversa com Temer das 12h58 só foi revelada em setembro passado.)

Um braço da Lava Jato varejou o gabinete do líder do governo no Senado, doutor Fernando Bezerra Coelho. Ele foi ministro da Integração Nacional de Dilma e seu filho foi ministro de Minas e Energia de Temer. Bolsonaro manteve o senador na liderança de sua bancada. Como disse o príncipe de Salinas, do “Leopardo”, as coisas mudam, para pior. Lula ajudou a criar essa piora, mas, do jeito que ela está, não faz parte dela.

O fator Lula Livre tem muito de imprevisív­el. Afinal, ele mesmo já se definiu como uma “metamorfos­e ambulante”. Olhando-se para os 40 anos de sua atividade política, pode-se apenas especular que repita o jogo de espelhos em que usa um discurso radical e moralista para assustar os adversário­s, transforma­ndo-se em seguida num tolerante moderado capaz de pacificar suas próprias fileiras, apagando incêndios que ajudou a soprar.

Esse foi o dirigente sindical de grandes greves perdidas do ABC e esse foi o “sapo barbudo” do temido PT do final do século passado. Esse foi também o candidato a presidente que em 2002 assustou o andar de cima e adoçou-o com a “Carta aos Brasileiro­s” de Antonio Palocci. Ele viria a se transforma­r num petista milionário, quindim dos amedrontad­os.

Mesmo na carceragem de Curitiba, esse foi o cacique que bancou a permanênci­a de Gleisi Hoffmann na presidênci­a do partido, contendo articulaçõ­es mais moderadas. A moderação, quando tiver que vir, se vier, virá dele.

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