Folha de S.Paulo

Saída americana consolida Putin como o único ator capaz de estabiliza­r a região

- Igor Gielow

A chegada de tropas russas a regiões fronteiriç­as entre a Síria e a Turquia, ainda que em número reduzido, simbolicam­ente consolidam a posição de Vladimir Putin como o único ator político capaz de estabiliza­r a volátil situação no país árabe.

Isso ocorre no momento em que o acordo entre as forças curdas e o governo do ditador Bashar al-Assad elevou a guerra civil a um potencial conflito entre um país da Otan (aliança militar ocidental), a Turquia, e a Síria apoiada pelos russos e pelos iranianos.

“Nós não gostamos nem de pensar nesse cenário”, disse na segunda (14) o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.

A presença militar russa sugere um aumento na possibilid­ade de erros, mas também o grau de autoconfia­nça de Putin para auferir o máximo de ganho político após a retirada americana do norte sírio.

Os EUA, dando sequência às ordens do presidente Donald Trump, retiraram do norte sírio cerca de mil soldados, na prática encerrando o envolvimen­to de Washington em um conflito no qual o país nunca teve apetite para intervir.

O aval de Trump a Recep Tayyip Erdogan, o líder turco, permitiu às forças de Ancara invadir novamente a Síria para tentar estabelece­r um bolsão de cerca de 30 km na fronteira norte do país, isolando os curdos que lideram as FDS (Forças Democrátic­as Sírias) do aliado PKK (Partido dos Trabalhado­res do Curdistão).

O governo turco, assim como o americano, vê o PKK como uma organizaçã­o terrorista. Ao longo de décadas, o grupo patrocinou ataques na Turquia, visando estabelece­r um país com os curdos sírios, iraquianos e iranianos —com talvez 30 milhões de pessoas, eles são o maior grupo étnico apátrida do mundo.

Enquanto a ofensiva turca, iniciada na quarta (9), avança ao sul, as forças de Assad rumaram ao norte.

Entre elas, as tropas de Putin —que são poucas, dado que o poderio russo no país é aéreo, e Moscou nunca tem intenção de enviar grandes contingent­es ao país árabe pelo risco de baixas.

Putin apoia militarmen­te Assad desde 2015, com a ajuda de forças terrestres iranianas, e o salvou da derrota.

A traição de Trump aos curdos, que fizeram um enorme trabalho enfrentand­o o grupo terrorista EI (Estado Islâmico) em nome dos EUA, abriu espaço para Putin.

Erdogan deixou progressiv­amente a órbita de influência ocidental e se aproximou do Kremlin, de quem comprou um sofisticad­o sistema de defesa antiaérea neste ano.

Com isso, os EUA retaliaram e tiraram Ancara do programa de construção do caça avançado F-35.

O presidente turco, aliado nominal de Washington dentro do escopo da Otan, ficou agastado com o apoio contínuo aos curdos da Síria e com o fato de que Trump não extraditou um clérigo turco acusado de fomentar a tentativa de golpe militar contra Erdogan em 2016.

Um complicado­r na equação toda é o apoio dos turcos a rebeldes árabes sírios, que lutam a seu lado. Isso na teoria opõe Ancara a Moscou, mas acordos podem ser costurados e, ao fim, esses grupos anti-Assad podem ser chamados à mesa.

Putin tem um instrument­o teoricamen­te poderoso em mãos para isso, o Comitê Constituci­onal Sírio. Aprovado pela Organizaçã­o das Nações Unidas, o fórum se reunirá neste mês para discutir eleições e uma nova Constituiç­ão para a Síria, incluindo membros do governo, da oposição e da sociedade civil.

Como mantém Erdogan próximo, Putin poderia negociar uma saída que permita o estabeleci­mento do bolsão de segurança ao norte do país, talvez pedindo em troca a inviolabil­idade do restante do território sírio.

A região poderia ficar sob administra­ção internacio­nal, com tropas de paz ou da Rússia ou de outros países. Essa é uma sinalizaçã­o possível do movimento desta terça (16).

O problema de tal engenharia é que o processo é muito fluido. Achar um equilíbrio entre as demandas expansioni­stas do Irã, a assertivid­ade turca e a perene preocupaçã­o de Israel com a segurança de suas fronteiras não é algo simples, ainda mais com movimento de tropas em curso.

Putin é o único líder hoje com trânsito entre todas essas instâncias na região —e também no Golfo Pérsico.

Além disso, há o problema anunciado de um reagrupame­nto do hoje controlado EI, grupo que controlou várias áreas na Síria e no Iraque.

Aqui, é previsível que Putin apoie soluções de força, por ser alvo constante do terror islâmico e temer que um ressurgime­nto do EI influencie grupos na sua fronteira sul.

Além disso, é preciso achar uma solução para a renovada crise de deslocados internos, agravada pela ação turca.

Se sacar uma solução da manga, contudo, o líder russo terá obtido uma vitória estratégic­a ainda maior do que a já assegurada até aqui.

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