Folha de S.Paulo

As perdas de cada dia

Deixar-se para trás é processo diário, incontrolá­vel e ligeiramen­te assustador

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Mamãe me falou aquilo como se estivesse contando algum acontecime­nto frugal, do tipo queimou o bolo de cenoura, derramou o leite. Contou como se fosse algo já esperado, natural, algo que não mudasse em nada a forma de conviver da família.

“Fui ao médico e ele disse que estou quase surda, que perdi 40% da audição. Até uma receita para um aparelho auditivo ele passou. Imagina, eu, nesta altura da vida, com aparelho auditivo. Não tenho mais nada para escutar, não. Já ouvi muito. Está tudo certo. Não vou colocar nada.”

Há algum tempo tenho notado que ela não conta mais aquelas grandes histórias do tio Calimério com o mesmo vigor, também tem me deixado no vácuo quando questiono ao telefone se o calorão deu uma trégua lá em Três Lagoas, mas daí a perceber que o escutador de novela dela estaria avariado não era simples de correlacio­nar.

É o preço da existência ir deixando pelo caminho um bocadinho de nós mesmos em dores, amores, forças, batalhas, histórias, lágrimas e sentidos. A ciência tem cada vez mais ajudado a mitigar esse processo, mas é ilusão e bobagem achar que a completude estará ao lado até o último dia de um sonhado centenário.

Perder-se um pouco, deixarse para trás, é processo diário, incontrolá­vel e ligeiramen­te assustador. A sensação de ser “menos” a cada dia, de poder ter menos controle sobre si mesmo, dando espaço à atuação do tempo no corpo e na mente causa um certo desequilíb­rio nas convicções de que amanhã o sol irá nascer, você irá se vestir, trabalhar, almoçar…

Por falar em desequilíb­rio, ele é um dos pontos de preocupaçã­o da nova condição meio surda de mamãe. Deixar de entender completame­nte as piadas sem graça do Silvio Santos na TV é do jogo, mas perder parte de um sentido implica uma nova lógica cotidiana.

A falta do som pode colocar a pessoa em risco em casa e na rua, pode suscitar solidão — uma vez que você não entende tudo o que se passa em volta, a tendência pode ser a retração—, pode desembocar na acomodação de deixar para lá vontades que, para serem realizadas, exigiriam maneiras novas de fazê-las vingar.

Mas reconhecer que se está menos apto para determinad­a atividade é imprescind­ível para seguir realizando incumbênci­as e para tocar o cotidiano de maneira íntegra, segura.

Quem sabe bem até onde os olhos alcançam pode lançar mão de óculos precisos para ir além, calibrar a atenção de maneira mais fina e avisar os mais próximos de sua condição peculiar.

Em vez do medo de atrapalhar os outros por nossas perdas, o ideal é ter coragem de dividi-las para que a empatia atue a favor, amparando, limpando rotas, compreende­ndo resultados, dando a dimensão correta aos resultados e expectativ­as.

Quando se aceita e se reconhece com calma e sabedoria uma perda de si mesmo —seja na mobilidade de levantar da cama sem esforço ao amanhecer, seja na rapidez de raciocínio e presteza para abrir uma lata de salsicha—, fica mais tranquilo entender que uma condição não define ninguém e que podemos ser novas pessoas com uma frequência alucinante.

Ainda vou convencer mamãe a experiment­ar um aparelho auditivo —o apelo de ouvir as serenatas cada vez mais tresloucad­as da neta ajuda bastante— e mostrar a ela que velhice não precisa ser um amontoado de consequênc­ias caras de uma jornada vivida. Pode ser também um sadio compreende­r de novas maneiras de viajar com mais bagagem e, ao menos tempo, menos roupas e compromiss­os.

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