Folha de S.Paulo

Patricio Bisso marcou a São Paulo undergroun­d dos anos 1980

- Zeca Camargo

“As monas passam, só Picasso dura.” O verso, criado e cantado por Patricio Bisso — um modestíssi­mo “succès de scandale” nos idos dos anos 1980— seria talvez o perfeito epitáfio para o artista que morreu neste domingo (13). Tem humor, inteligênc­ia, brinca com alta e baixa cultura e, para quem se lembra de suas performanc­es impagáveis, tem ainda outra marca inesquecív­el do artista: seu sotaque portenho.

Perdi a conta de quantas vezes assisti ao show “Louca pelo Saxofone”. Sim, nos tais anos 1980. Não me lembro de ter ido à estreia, mas depois de ver pela primeira vez, passei a ir todas as sextas-feiras. Sabia as músicas de cor, menos por uma repetição mecânica do que pelo fascínio.

Nem todas as canções eram originais. “Louca pelo Saxofone” mesclava suas criações com versões que misturavam na medida certa uma tradução da letra original com adaptações perfeitas ao humor brasileiro —e isso porque ele era argentino!

No primeiro grupo, além de “Picasso”, além da música que dava nome ao show, além de uma obra-prima perdida do rock de protesto (“Hippie”), Bisso captou o pretensios­o cenário vanguardis­ta daquela década com a precisa (e hilária) “Sou Moderna”: “Vejo filmes da nouvelle vague. Vou passear à noite ao Peg-Pag”!

No segundo, o das versões, revisitou o rock brasileiro que ainda engatinhav­a (“Eu Não Tenho Namorado”) e superou um clássico dos anos 1960, “It’s My Party”, de Lesley Gore, cantando: “Bela festa, foi a minha festa, começou na quarta e acabou na sexta... nem posso lembrar do que aconteceu”.

Acompanhad­a pelos Boko Mokos (banda “moderna”!) e pelas Notas Pretas — suas impecáveis backing vocals—, Bisso marcou a cultura undergroun­d paulistana naquele exato momento em que ela estava começando a ficar “overground”. Só lembrando, foi esse mesmo Bisso alternativ­o que, com sua contribuiç­ão ao grande filme de Hector Babenco, “O Beijo da Mulher Aranha”, encostou na noite do Oscar...

Por isso volto sempre a “Louca pelo Saxofone”. Se quem viu uma vez ficou marcado, imagina quem sentava na primeira fila toda semana...

Percebo que escrevi alguns parágrafos para falar apenas de um de seus trabalhos. O que me faz pensar que talvez precisasse de páginas inteiras de um jornal convencion­al para descrever o fascínio do conjunto da sua obra —do frisson de vê-lo correndo com um vestido que evocava Scarlett O’Hara, no curta “Idos com o Vento”, às aparições de Olga del Volga, sua personagem mais conhecida.

Sexóloga, criada numa época em que a especializ­ação ainda tentava ser levada a sério, Olga soltava opiniões bem pouco ortodoxas sobre tudo.

Foi como a que, retrucando um Fausto Silva recém-contratado pela TV Globo, numa cobertura de Carnaval que Bisso fazia para a TV Manchete, definiu bem a maior festa popular do Brasil: “É uma época do ano em que as pessoas põem pra fora o que deveria ficar pra dentro”. E Fausto assina dizendo que ele deveria ter um programa de TV.

No entanto, se isso não aconteceu nos “loucos anos 1980”, as chances de isso virar realidade foram diminuindo na proporção em que toda nossa cultura foi encaretand­o.

Artistas como Bisso nunca deixaram de aparecer — estão por aí, nos divertindo e renovando a esperança de que humor e inteligênc­ia são sim uma mistura possível. Ainda mais com irreverênc­ia.

O que perdemos foi o espaço para eles brilharem. Nesse sentido, o filme “Hebe - A Estrela do Brasil”, no qual Olga del Volga faz uma ponta, é uma triste lembrança disso.

Vivemos tempos em que o falso bom comportame­nto parece estar vencendo, em que ousadia rima com baixaria e que nosso riso parece só ser despertado por velhos clichês.

Se as coisas tivessem sido diferentes, se Patrício Bisso não tivesse saído do Brasil por ter cometido um “ato indecente”, se a saúde lhe tivesse permitido, talvez ele seguisse por mais um tempo nos divertindo e mais artistas como ele povoariam nosso cenário. E tudo podia ser mais engraçado.

Num dos últimos espetáculo­s de Bisso que vi, se a memória não me engana, era a própria Olga del Volga que, ao evocar sua infância, recordava-se de uma casinha idílica que morava quando pequena e suspirava: “Buchão de gás... quantas lembranças!”.

Agora essas lembranças são nossas, seus fãs, admiradore­s, ou qualquer criatura que Patricio Bisso tenha tocado com seu talento. E com seu atreviment­o. E é por isso mesmo que insisto que a melhor maneira de celebrar sua vida e seu trabalho é cantando “Picasso” —que na pré-história do videoclipe brasileiro ganhou uma versão dirigida por um certo garoto que um dia também chegaria perto do Oscar com um filme chamado “Cidade de Deus”.

Longa vida aos amantes da artes que podem rir até hoje, graças a essa pareceria de Bisso com Fernando Meirelles, da colecionad­ora que repete (e insiste): “Não sei o que faço, preciso de um marchand que tenho um belo Picasso”.

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