Folha de S.Paulo

SPFW se volta ao místico e aos corpos alterados

Bobstore, Reinaldo Lourenço e a grife Ão despejaram chapéus de bruxa, gargantilh­as e mulheres siliconada­s na passarela

- Pedro Diniz

são paulo Enquanto ninguém reinventa a roda, o que sobra é olhar para o que já foi feito com uma régua diferente que, em maior ou menor grau, carregue algum significad­o. Os estilistas André Boffano, das grifes Bobstore e Modem, e Reinaldo Lourenço flertaram com a ansiedade do século e com abusca por autoconhec­imento no segundo dia de desfiles desta São Paulo Fashion Week.

O fetiche, o misticismo e alguma revolta contra o status quo definiram a interpreta­ção de clássicos proposta nas passarelas desta terça(15) no Pavilhão das Culturas Brasileira­s, no parque Ibirapuera, em São Paulo, para onde o evento voltou nesta sua 48ª edição.

Inspirado por uma série de obras abstratas da sueca Hilma af Klint, Boffano enveredou por geometria e estética boho na tentativa de imitar essa figura que por muito tempo ficou à sombra da arte por criar obras a partir de sessões espíritas e, supostamen­te, antever movimentos estéticos em suas telas —não por coincidênc­ia, um dos fundamento­s da moda.

Não há invencioni­ces no estudo do designer, e sim peças clássicas que foram revistas sob aluz dacar telada artista, das formas vistas em seus quadros e em detalhes pontuais colados em casacos, vestidos exuberante­s que misturam lu ré xera ión,ec apas de tricô cuja base imagética éa indumentár­ia das bruxas.

Bruxas estão na moda, aliás. Desde que a Dior, em março, explorou referência­s a essas mulheres —que, segundo algumas leituras, foram perseguida­s por uma sociedade que não aceitava sua independên­cia—, a imagem folclórica das feiticeira­s vem tomando as vitrines, maquiada com uma elegância algo gótica.

No desfile, cabelos, chapéus gigantes, como aqueles usados pela bruxa de Beyoncé no clipe da música “Formation”, e camadas de tecido sobreposto­s em peças plissadas são o verniz desse guarda-roupa místico.

Por coincidênc­ia, a escultura “Musa Impassível”, obra do artista modernista Victor Brecheret que homenageia a poeta paulista Francisca Júlia, acompanhav­a o vaivém de modelos como extensão do discurso de Boffano.

Júlia furou o ambiente masculino da literatura e, no poema que dá nome à escultura, celebra o orgulho feminino e prega força na adversidad­e.

É um discurso compatível com o de outro esteta, mais experiente, da moda brasileira. Reinaldo Lourenço levou referência­s de seu repertório ao desfile inspirado nas origens do punk inglês, com elementos brutos, como o couro, os zíperes e os ilhóses, se fundindo aos traços da indumentár­ia clássica vitoriana.

Se o punk britânico se rebelava contra as tradições de um sistema excludente como o monárquico, em seu desfile, Lourenço tratou de criticar a opressão sofrida pelas mulheres, um tema recorrente de sua passarela, usando emblemas de sua sujeição aos homens ao longo da história.

Gargantilh­as com tachas, argolas de bondage e estruturas de corset receberam tratamento luxuoso nas peças de viés clássico e com alto potencial de venda.

A estampa de rosas em vermelho e preto sobre base branca era uma das poucas referência­s visuais ao romantismo, mas foi espertamen­te usada como contrapont­o aos itens de alfaiatari­a com verniz austero.

Confortáve­l em seus métodos de entregar uma feminilida­de classuda com informação de moda atenta aos caminhos do que é contemporâ­neo, o estilista conseguiu a façanha de imitar códigos rebeldes para uma clientela nobre afeita ao botox, que, no desfile, bebeu água gaseificad­a das fontes de Vergèze, na França. Uma ironia fina.

A discussão da beleza e da busca dolorosa por ela também puderam ser notadas em uma das gratas surpresas deste calendário mais autoral da SPFW. A estilista Marina Dalgalarro­ndo, da grife Ão, levou peças que, a partir de um estudo de formas, ora amplas, ora repuxadas, tratavam de procedimen­tos estéticos para alterar o corpo.

Bodybuilde­rs, mulheres siliconada­s e deformaçõe­s auto-infligidas foram o norte para os looks de látex —dos em estado puro, que precisaram ser molhados antes da apresentaç­ão e que traziam bolhas brotando de sua superfície, aos industriai­s, aparenteme­nte perfeitos, moldados pela ação humana.

Espécie de metáfora sobre o artificial, os tecidos que circularam pela passarela traziam pontos de cor em verdelimão e azul —dois tons quesão alienígena­s na natureza e que, na coleção, remetiam ao gosto humano pelo alterado.

 ?? Fotos Rodrigo Moraes/TheNews2/Folhapress ?? Looks da Bobstore, à esq., e de Reinaldo Lourenço exibidos na SPFW
Fotos Rodrigo Moraes/TheNews2/Folhapress Looks da Bobstore, à esq., e de Reinaldo Lourenço exibidos na SPFW

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