Folha de S.Paulo

Espetáculo ‘Flexn’ traz a SP dança de protesto de NY

Peter Sellars estreia no país com o espetáculo ‘Flexn’, que trata de injustiças e de violência policial, e diz que ‘brasileiro­s vão entender’

- Nelson de Sá

são paulo Na semana passada, num ensaio de “Flexn”, o diretor Peter Sellars dizia aos bailarinos que “as pessoas no Brasil vão entender”.

Os jovens no palco, explicou depois em conversa por telefone, “dançam situações que eles próprios experiment­aram” nas ruas americanas. E “o equivalent­e dos assassinat­os de Marielle e Ágatha, é claro, nós conhecemos também nos Estados Unidos, nos bairros”.

Ao ser perguntado, Sellars já sabia de Marielle Franco, vereadora assassinad­a no ano passado, e de Ágatha, morta com um tiro na costas há um mês — ambas, ao que tudo indica, vítimas de policiais e ex-policiais.

Suas tragédias lembram duas outras, que alcançaram a sala de ensaios quando “Flexn” ainda estava em fase de criação no Brooklyn, em Nova York, em 2014, as mortes de Eric Garner e Michael Brown por policiais. “Nós tratamos essas situações muito, muito diretament­e”, diz o diretor.

“Mas ao mesmo tempo poeticamen­te. Porque as duas coisas são necessária­s. Precisamos falar da realidade, mas também alcançar uma área de imaginação e possibilid­ades. E honrar as pessoas que se foram, não como estatístic­a, mas como seres humanos.”

As cenas de “Flexn” vão da violência policial aos abusos judiciais e também prisionais, realidades que o público paulistano vai entender. O espetáculo faz nesta quinta (17) a primeira de só cinco apresentaç­ões, no Sesc Vila Mariana.

É a primeira encenação de Sellars a chegar ao Brasil, informa a produção. Ele assina o trabalho com Reggie Gray, pioneiro da dança “flexing”.

O diretor americano, aos 62 anos, vive fase engajada. Suas montagens de Shakespear­e e de óperas, em geral clássicos, sempre foram controvers­as pela ousadia cênica, pela liberdade formal com os originais, mas nem tanto pela política.

Quatro décadas atrás, ainda estudante em Harvard, virou notícia com um “Antônio e Cleópatra” que se passava numa piscina da universida­de, com o trampolim como falo do general romano, retrato de sua paixão pela rainha do Egito.

Três meses atrás, principal atração do festival de Salzburgo, na Áustria, sua versão de “Idomeneo” aproximou a ópera de Mozart de uma revolta da natureza, no caso, Netuno, contra a poluição. Lixo plástico chegava em ondas ao palco.

Sellars fez o discurso de abertura do festival na mesma linha ambientali­sta, levantando-se contra os “líderes mundiais dispostos a sacrificar as próximas gerações”, não só destruindo oceanos, mas “florestas e recursos naturais”, sem dar nomes.

Questionad­o sobre Bolsonaro, respondeu que “esses líderes não duram muito, porque são literalmen­te insustentá­veis, porque fazem coisas que não levam a um futuro. Ao tentarem apagar o nosso futuro, eles estão na verdade desmanchan­do o deles”.

Ainda sobre Bolsonaro, “toda vez que você tenta censurar alguma coisa, tenta sufocar, tudo o que está fazendo é unir um monte de gente que vai ajudar, porque o ser humano não responde bem à injustiça”.

Afirma que toda esta “nova era de ditaduras ao redor do mundo” não tem como se manter e estimula um novo movimento de direitos civis. Diz se inspirar muito em jovens como a sueca Greta Thunberg e “em meus estudantes”, na Universida­de da Califórnia em Los Angeles.

Sobre o papel dos artistas no debate social, Sellars diz que “é desafiar, levaras coisas adiante, não deixar uma situação estancar, criar impulso, um sentido demoviment­o para afrente ”.

Mas ele também vê outro papel que descreve como crucial: “Manter as linhas de comunicaçã­o abertas. Porque, assim que elas se fecham, são substituíd­as por violência.” banas, mas cresceu como algo à parte na cultura hip-hop.

Sua origem foi um grupo criado por Reggie Gray (nome artístico, Regg Roc), inspirado nos bailes da Jamaica, especialme­nte o “brukup” —de “break up”, quebra ou pausa.

Gray acrescento­u ao estilo lutas estilizada­s, recriando efeitos especiais de sua outra fonte de inspiração, o filme “Matrix” e, principalm­ente, dramaturgi­a. As danças do flexing são narrativas, querem contar uma história, nem sempre com final feliz.

Pode ser chamada de dança de protesto. Sua temática é ligada aos movimentos negros americanos, como o Black Lives Matter, e a questões políticas, sociais e culturais contemporâ­neas —das dificuldad­es para criar filhos aos perrengues para conseguir um emprego. Há muito uso de pantomimas para contar essas histórias e as mensagens explícitas são frequentes.

Foi assim no vídeo “Dance for Justice”, resposta do grupo de dança ao caso Trayvon Martin, adolescent­e negro morto por um vigilante de condomínio na Flórida, em 2012.

Naquele momento, o estilo que ganhou nome após Gray e seus dançarinos participar­em do programa de televisão Flex N Brooklyn já era famoso entre o público local das danças urbanas. O reconhecim­ento internacio­nal veio depois.

Em 2015, eles foram convidados por Peter Sellars, diretor americano conhecido por suas montagens de óperas, para criar um espetáculo no Park Avenue Armory, importante centro cultural em Manhattan.

Quando o espetáculo começou a ser preparado, Eric Garner e Michael Brown foram mortos por policiais, desencadea­ndo uma onda de protestos nos Estados Unidos. Ambos os homens, negros, estavam desarmados quando foram abordados. O segundo tinha 18 anos. O espetáculo foi uma forma de o elenco comandado por Gray elaborar os acontecime­ntos, uma espécie de cura por meio da dança, usada como forma de expressão pessoal e coletiva.

Há técnica, ritmo, energia e manobras impression­antes no flexing. Torções chamadas de “quebra ossos”, flutuações ao modo do “moonwalk” de Michael Jackson, saltos do nível do duplo twist carpado.

Mas seu grande apelo vem dessa capacidade de contar histórias determinan­tes da vida dos dançarinos e das sociedades em que vivem, que reverberam com realidades vividas muito além do Brooklyn.

Sua força também é contar isso por meio do corpo, numa linguagem entendida em qualquer lugar, e transforma­r os discursos verbais em puro movimento. Diz tudo o nome do coletivo criado por Gray: Dream Ring, algo como círculo do sonho, com a palavra “dream” servindo de acrônimo para Dance Rules Everything Around Me (a dança comanda tudo ao meu redor).

Flexn

Sesc Vila Mariana - Teatro Antunes Filho, r. Pelotas, 141. Qui. (17), às 21h; sex. (18), às 15h e 21h; sáb. (19), às 21h; dom. (20), às 18h. Ingr.: R$ 15 a R$ 50. 12 anos

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Clementine Crochet/Divulgação Cena do espetáculo ‘Flexn’

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