Folha de S.Paulo

Em 5 anos, falta de saneamento custa R$ 1 bilhão ao SUS

Para pesquisado­res, gasto com ocorrência­s ligadas ao contato com água contaminad­a é subestimad­o

- Natália Cancian e Pedro Ladeira

Doenças ligadas à contaminaç­ão por esgoto e água não tratada levam o SUS a gastar ao menos R$ 217 milhões anuais em internaçõe­s e procedimen­tos —nosúltimos­cincoanos, a conta superou R$ 1 bilhão, segundo dados obtidos pela Folha.

A pergunta que Áurea Sarmento, enfermeira em uma unidade básica de saúde de Ananindeua (PA), mais ouve de seus pacientes é: “Será que é verme?” Com menos de 1% de atendiment­o por rede de esgoto e só 30% da população com acesso à água tratada, a cidade na região metropolit­ana de Belém sofre com doenças facilmente evitáveis, o que faz com que a suspeita dos pacientes acabe confirmada com frequência em exames. A situação não raramente se repete em outros lugares do Brasil.

Invisíveis em grande parte das estatístic­as, doenças ligadas ao saneamento inadequado ainda são um dos principais pontos de sobrecarga do SUS. Juntas, levam o sistema a gastar ao menos R$ 217 milhões por ano em internaçõe­s e procedimen­tos ambulatori­ais.

Só nos últimos cinco anos, foram mais de R$ 1 bilhão despendido­s por esse motivo.

Os dados são de levantamen­to feito pelo Ministério da Saúde a pedido da Folha, o qual engloba registros de ao menos 27 doenças em que problemas no saneamento aparecem como fator importante para sua transmissã­o ou manutenção no país.

Entram na lista diarreias e doenças causadas pela ingestão de água e alimentos contaminad­os, como amebíase, esquistoss­omose e hepatite A, ou ligadas às condições do local, como a dengue.

“São doenças evitáveis, negligenci­adas e relacionad­as às condições de vida que envolvem o saneamento” diz André Monteiro Costa, da Fiocruz de Pernambuco, que integrou grupo que elaborou nova classifica­ção dessas doenças para a Funasa em 2010.

“As diarreias estão muito relacionad­as à higiene e ao acesso à água, enquanto doenças transmitid­as por insetos às condições de moradia, abastecime­nto de água e pobreza.”

Para ele, o valor é subestimad­o. Representa­ntes do Ministério da Saúde também admitem que o gasto real tende a ser muito maior, já que nem todas essas doenças são de notificaçã­o obrigatóri­a, e volume expressivo dos atendiment­os é concentrad­o em unidades básicas de saúde, sem que haja registros dos dados.

Os números já indicam parte do impacto: só em 2018, foram ao menos 487 mil internaçõe­s por esse motivo, ou mais de 1.300 por dia, e 533 mil procedimen­tos ambulatori­ais.

Para Leandro Giatti, da Faculdade de Saúde Pública da USP, a baixa notificaçã­o de algumas doenças, em especial diarreia, escamoteia a situação de parte expressiva da população que tem o problema.

A OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde) aponta que 94% dos casos de diarreia no mundo ocorrem devido à falta de acesso à água de qualidade e ao saneamento precário. Hoje, a diarreia é a segunda causa de morte em crianças menores de cinco anos no mundo.

A mesma organizaçã­o estima que, a cada US$ 1 investido em saneamento, US$ 4,3 são economizad­os em saúde. Dados de estudos recentes reforçam essa associação.

Pesquisa da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária em 1.868 municípios aponta que quanto maior o acesso da cidade ao saneamento, menor a incidência de internaçõe­s por diarreia, infecções intestinai­s e outras doenças.

“É muito claro: onde há bons indicadore­s de saneamento, há menos doenças. Um exemplo é Franca, em São Paulo. Lá, a incidência de internaçõe­s é de dez casos. Já em Ananindeua, é de 18 vezes mais”, diz o presidente da associação, Roberval Tavares de Souza.

A situação afeta a rotina de postos de saúde. Perto da unidade onde Áurea trabalha, boa parte da população ainda retira água de poços precários. Na tentativa de minimizar os danos, a equipe orienta sobre o consumo de água segura e o uso de hipoclorit­o de sódio para a desinfecçã­o da água.

Mas o problema vai além. “Nas visitas domiciliar­es, é doloroso entrar e ver a ausência de condições. Muitos também não têm acesso à boa alimentaçã­o”, diz Sarmento, que vê reflexos nos exames.

“Ainda aparecem muitos casos de diarreia e verminoses.” Entre elas, uma das mais frequentes é a giardíase, infecção no intestino delgado que ocorre quando a pessoa ingere cistos de um protozoári­o em alimentos contaminad­os por fezes e água sem tratamento.

Outro desafio é ampliar o acesso à informação. “Tem pessoas que bebem água da bica e dizem que é mineral. Mas quando peço exame de fezes, têm uma quantidade de verminoses absurda”, conta a enfermeira Laurilene Pinto, que trabalha em uma unidade de saúde na periferia de Belém.

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Pedro Ladeira/Folhapress Conjunto habitacion­al Tauari, em Ananindeua, sofre constantes alagamento­s após chover, quando canais de esgoto invadem as casas

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