Folha de S.Paulo

Duplo grau de jurisdição, sim; quádruplo, não

Presunção de inocência não é salvo-conduto

- Roberto Livianu Promotor de Justiça em São Paulo, doutor em direito pela USP, idealizado­r e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

Até o século 18 não existiam regras processuai­s penais. A punição, um ato de vingança, não era fixada racionalme­nte ao cabo de processos com garantias, princípios e respeito à dignidade humana, à luz das provas.

O processo foi construído como roteiro obrigatóri­o e sequencial de atos para que houvesse segurança jurídica, previsibil­idade, equilíbrio entre as partes e para que se estabelece­ssem limites ao poder punitivo do Estado, antes absoluto.

Assim nasceram os princípios do devido processo legal: contraditó­rio, ampla defesa, entre outros. Destaco o do duplo grau de jurisdição, segundo o qual o acusado tem direito a recorrer das sentenças monocrátic­as condenatór­ias para os tribunais, onde os julgadores reexaminar­ão de forma colegiada e independen­te o caso, podendo manter ou reformar a decisão.

Nos dois graus de jurisdição são examinados e reexaminad­os os fatos e as provas. A partir daí não se poderá fazer novo reexame, para evitar a eternizaçã­o dos processos. Essa lógica está presente nos sistemas de Justiça de todo o mundo ocidental democrátic­o, visando oferecer garantias processuai­s plenas de um lado, e, de outro, estabelece­r um ponto final —para assim proteger o sistema da indesejáve­l prevalênci­a da impunidade, símbolo amargo de fracasso e ineficiênc­ia.

Como se sabe, além dos tribunais de Justiça nos estados e tribunais regionais federais, temos aqui os tribunais superiores —o STJ e o STF, e ambos editaram súmulas vedando novos reexames dos fatos e provas. São as de número 7 (STJ) e 279 (STF).

Diferentem­ente do que afirmam alguns, de forma indevida, nossa Constituiç­ão não assegura ao criminoso o direito de somente ser preso para cumpriment­o da pena após trânsito em julgado da sentença condenatór­ia (momento em que não mais cabem recursos). O artigo 5º, inciso LVII da Constituiç­ão Federal enuncia, na verdade, que ninguém será considerad­o culpado antes da decisão final, mas nada menciona e não veda a prisão.

Nessa linha, democracia­s modernas, como França e Estados Unidos, mandam criminosos para a prisão após a sentença de primeiro grau. Sequer esperam o resultado de eventual recurso ao tribunal. No plano internacio­nal, a presunção de inocência é vista como um norte jurídico, e jamais como salvo-conduto impeditivo da prisão.

Em nenhum país se exige o percurso a quatro graus de jurisdição para que se comece a cumprir a pena. Bem por isto, em 2016, fixou-se entendimen­to pelo plenário do Supremo, por 7 a 4, tendo como relator o ministro Te ori Zavascki, que a partir da condenação em segundo grau apena pode e deve ser cumprida. Afinal o grau deju ris diçãoé duplo, não quádruplo.

De lá para cá, nesses três anos, nada mudou no ordenament­o jurídico que justifique a alteração dessa interpreta­ção, marcante no que diz respeito ao resgate da credibilid­ade da Justiça junto ao povo, que, talvez pela primeira vez, tenha sentido que ela teria passado a alcançar quem sempre se considerou intocável.

Além disso, e especialme­nte a partir desse precedente, aumentou o número de colaboraçõ­es premiadas, que permitiram a responsabi­lização de um número significat­ivo de criminosos com muito poder político e econômico.

As colaboraçõ­es aumentaram porque os delatores tiveram a sensação de que a Justiça estava funcionand­o. Temendo altas penas, dispuseram­se a colaborar para alcançar prêmios suavizador­es de suas sanções.

O garantismo penal oferece ao acusado sólido sistema de blindagem a abusos do poder estatal, mas também abrange o direito das vítimas ao processo eficiente, que garanta a efetividad­e da proteção aos bens jurídicos abrangidos nas normas penais. No entanto, não poderá jamais servir como instrument­o garantidor de obstrução ao processo e de impunidade.

O caso Pimenta Neves, em que o assassino confesso da namorada não pôde ser levadoà prisão para cumprir apena antes do julgamento de recursos e mais recursos, mostranos com cores vivas que, acima de tudo, adinâmica da Justiça deves e basearem razoabilid­ade e bom senso. É oque o país espera que prevaleça nesta quinta-feira (17).

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