Folha de S.Paulo

O papel do Supremo

Processos não são instrument­os de reforma social

- Ademar Borges, Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) e Cláudio Pereira de Souza Neto Advogados responsáve­is por impetrar a primeira ADC (Ação Declaratór­ia de Constituci­onalidade) 43, que discute a execução provisória da pena

“Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito.” Manoel de Barros (1916-2014)

O país necessita, mais do que nunca, de uma corte constituci­onal comprometi­da com a proteção dos direitos fundamenta­is. Para dar conta da tarefa, é preciso recuperar a noção básica de que os magistrado­s não precisam concordar com o conteúdo das normas jurídicas para aplicálas. O decisionis­mo é uma grave disfunção do sistema constituci­onal.

Para evitar que decisões alheias ao direito sejam proferidas, a medida básica é respeitar os limites textuais impostos pelos dispositiv­os constituci­onais e legais. Interpreta­ções criativas para justificar a opção por uma das leituras possíveis do texto normativo são plenamente legítimas. Mas decisões judiciais contrárias ao texto expresso da Constituiç­ão e das leis produzem inconformi­smo social justificad­o e afastam a corte da neutralida­de inerente à sua elevada posição institucio­nal.

Exemplo reprovável de decisionis­mo provêm dos precedente­s do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão a partir da decisão de segunda instância. O artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece a necessidad­e do trânsito em julgado da condenação para que ocorra o início do cumpriment­o de pena de prisão.

A norma legal decorre de interpreta­ção do artigo 5º, inciso LVII da Constituiç­ão Federal, segundo o qual “ninguém será considerad­o culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia”. Como se observa, a interpreta­ção veiculada no artigo 283 do CPP é não só possível (o que já seria suficiente), mas inegavelme­nte razoável. Diante da redação do artigo 5º, inciso LVII, não é possível sustentar, sem negar o óbvio, que a lei seja inconstitu­cional.

Ao atuar contra o texto expresso da Constituiç­ão e das leis, o STF se afasta de sua função de poder neutro para se expor às disputas facciosas que caracteriz­am a luta da política ordinária. De todos os problemas associados à caracteriz­ação da Suprema Corte como protagonis­ta de reformas sociais, o mais grave é enfraquecê-la e, no limite, inabilitál­a para exercício de sua atribuição vital: preservar a unidade política, moderando os excessos das maiorias parlamenta­res e de governos de vocação autoritári­a.

Quando o Judiciário, ao se engajar em cruzadas contra a corrupção, relativiza os limites textuais da Constituiç­ão e das leis, agrava a crise da democracia. É necessário restabelec­er a lógica de que não há virtude em decidir contra a lei, ainda que, substantiv­amente, a decisão possa ser ovacionada pela opinião pública, no âmbito da “democracia de espectador­es”.

Os processos judiciais não podem ser encarados como instrument­os de reformas sociais. A atitude apropriada para a magistratu­ra é a da entrega imparcial da jurisdição, em conformida­de com a Constituiç­ão e as leis. Por isso mesmo é que uma decisão reconhecen­do a constituci­onalidade da lei processual penal —que optou pela execução da pena após o trânsito em julgado— não parece apenas recomendáv­el, mas a única possível para uma corte constituci­onal comprometi­da com os direitos fundamenta­is e com a democracia.

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Carvall

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