Folha de S.Paulo

O velho Estado e a ilusão do controle

O Brasil falhou na prestação de serviços, e a conta é paga pelos mais pobres

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Semana passada escrevi defendendo a ideia de que o Brasil deveria avançar na direção de uma reforma do Estado, e não apenas em um ajuste nas carreiras do setor público (que é obviamente importante). Na visão que apresentei, o governo precisa assumir sua função de inteligênc­ia e garantias de direitos, delegando a gestão da prestação dos serviços, sob contratos, para quem sabe fazer melhor, seja na sociedade ou no mercado.

O tema incomoda e muita gente me perguntou se havia evidências na direção do meu argumento. Elas existem, mesmo consideran­do o óbvio: evidências não podem provar, em definitivo, uma tese em um terreno complexo como a gestão pública. Mas elas podem sinalizar um caminho.

Talvez o mais consistent­e experiment­o de contratual­ização feito no Brasil seja o dos hospitais geridos por organizaçõ­es sociais no estado de São Paulo. Estudos feitos pelo Banco Mundial mostram uma clara superiorid­ade do modelo, tanto nos indicadore­s de qualidade como de custo. É o mesmo que aponta a Secretaria de Estado da Saúde: hospitais sob gestão das OSs conseguem ser até 52% mais produtivos e custam 32% menos do que os da administra­ção direta.

Na área prisional, chama a atenção a experiênci­a de gestão público-privada de prisões no Paraná, no início dos anos 2000. Estudo publicado pelos professore­s Sandro Cabral e Sérgio Lazzarini demonstrou a superiorid­ade do modelo não apenas no tocante à racionalid­ade de custos, mas também aos aspectos de segurança, saúde e ressociali­zação dos apenados.

No terreno da infraestru­tura, há uma crescente percepção que o setor privado, sob boa regulação, é mais eficiente na gestão direta de serviços. Segundo ranking elaborado pela CNT, as 20 melhores estradas brasileira­s são todas concessões gerenciada­s pelo setor privado.

A grande maioria está em São Paulo, e alguém poderia sugerir que se trata de uma questão política, visto que o estado anda sob o comando tucano há mais de duas décadas. Não é. O Governo da Bahia, sob a gestão do PT, tem a experiênci­a da concessão do metrô de Salvador, e está longe de ser o único exemplo.

Arriscaria dizer que a mais ousada e bem-sucedida experiênci­a de parceria público-privada brasileira veio da esquerda, do governo Lula, e foi na educação: o ProUni, que já formou perto de meio milhão de jovens brasileiro­s de baixa renda, a baixo custo e sem burocracia, na última década e meia.

É evidente que dados precisam ser analisados com a devida reserva. Modelos de parceria com o setor privado funcionam se houver bons contratos e acompanham­ento.

O que se pode dizer, com razoável dose de certeza, é que o Estado brasileiro falhou, estrutural­mente, na prestação de serviços, e a conta está sendo paga pelos mais pobres. Criamos regras institucio­nais que amarraram o setor público e o tornaram presa fácil dos políticos e corporaçõe­s.

Esta é, no fundo, a grande evidência empírica. Estamos sentados sobre uma montanha de dados, mostrando o óbvio. Agora mesmo, no debate sobre o saneamento básico, nos damos conta que perto de 100 milhões de brasileiro­s não dispõem de esgoto tratado. Quase metade de um país em que 94% do saneamento é tocado pelo setor público. Gostamos de procrastin­ar, fazer de conta que não enxergamos nada, mas a realidade está aí, batendo na nossa cara.

Alguns fantasmas precisam ser afastados desse debate. O primeiro é que, ao contratual­izar a prestação de serviços, o Estado “perde o controle” ou abre mão de suas responsabi­lidades. Ao contrário: o Estado retoma o controle. Converso com prefeitos, Brasil afora, e o que escuto é: temos apenas a ilusão de controlar alguma coisa em nosso sistema de educação. Em regra, não avaliamos resultados, e se avaliamos não temos instrument­os para corrigir rumos e fazer o que precisa ser feito. Ter controle é exatamente o oposto do que existe hoje: é poder fixar meta, cobrar e descontrat­ar, se for necessário.

Outro mito é a ideia de que parcerias com o setor privado só servem para estradas, portos e áreas de infraestru­tura. Isso não passa de um vezo elitista. Nos irritamos quando um aeroporto funciona mal e queremos que os Correios sejam como a Amazon, mas parecemos não dar bola quando a escola pública produz péssimos resultados. Afinal de contas, não é lá que estudam os filhos de quem decide essas coisas, certo?

O desafio é vencer a inércia e o pensamento corporativ­o, algo não propriamen­te simples, diga-se de passagem, neste país que se acostumou a conviver com o absurdo. | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo | sáb. Demétrio Magnoli

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