Folha de S.Paulo

‘Nunca se trata mal outro irmão’, afirma líder de oposição

- Depoimento a Rubens Valente

brasília e terra indígena takana ii (amazônia boliviana) Um dos principais líderes indígenas da Bolívia, o takana Adolfo Chávez, 48, organizou longa marcha que culminou em um protesto, em 2011, contra a construção de rodovia no coração da Amazônia boliviana. A partir daí, tornou-se desafeto do presidente Evo Morales, para quem Chávez havia feito campanha eleitoral, em 2005.

O takana acabou preso e se autoexilou por quatro anos em países da América Latina, deixando a mulher e quatro filhos na Bolívia. Apenas em fevereiro passado decidiu regressar ao seu país, mas ainda teme ser preso. A obra, uma das prioridade­s do presidente Evo Morales, utilizaria recursos do BNDES e tinha o apoio do ex-presidente Lula. Abandonada na época, ela voltou a ser feita e agora está prestes a entrar no território indígena.

Nasci em março de 1971 em Tumupasa, que significa ‘terra branca’, no Departamen­to de La Paz. Minha mãe Dolores emigrou e se capacitou enfermeira num centro de estudos linguístic­os de Beni.

Minha mãe morreu quando eu tinha 15 anos, uma pneumonia rápida. Devia ter 38, 40 anos. Antes de morrer, ela me encarregou de voltar à minha terra natal para conhecer meus primos, meus tios, mas nunca me disse que eu tinha vindo de uma família indígena.

Aos 19, 20 anos, fui viver com meu avô e o povo indígena takana. Lá soube que empresas queriam passar uma estrada sobre a nossa terra. Empresário­s de Santa Cruz estavam acercando-se da nossa terra para [extrair] madeira. Eles enganavam nossos irmãos porque compravam, vamos dizer, a R$ 20 reais, quando poderia valer uns US$ 3 mil.

Decidimos: ‘Ninguém mais vai vender madeira e queremos que nos respeitem’. Minha primeira ação foi por volta de 1995, entrei com meus irmãos takanas com flechas e lanças, armas, escopetas, e expulsamos uma empresa.

Em 1997, assumi essa responsabi­lidade [da secretaria de território­s dos takanas] na organizaçã­o indígena Central de Paz Indígenas de La Paz.

Conheci Evo Morales quando começamos a fazer campanha para ele por volta de 2005. Havia uma crise política no país. Em 2003, todos os bolivianos resolveram derrubar [o então presidente] Sánchez de Lozada porque ele tinha um plano para passar um gasoduto e vender aos EUA.

Não havia mais líderes políticos na Bolívia. Nossa organizaçã­o disse: ‘Não vamos fazer parte de partidos políticos, vamos assumir a liderança da Bolívia’. Todos trabalhamo­s para Evo. Ele ganhou. Fizemos nossa assembleia e 34 povos indígenas me elegeram presidente dessa organizaçã­o.

Quando Evo foi presidente, no primeiro mandato, eu conversava com ele como estou aqui conversand­o contigo.

Mas quando vimos que as leis estavam saindo contra a Constituiç­ão, não podíamos ser cúmplices de desrespeit­o ao nosso direito. O principal foi quando ele quis passar a estrada sobre a Tipnis [Terra Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure, área protegida desde 1965], em 2011.

Nos mobilizamo­s e partimos, em 15 de agosto de 2011, para frear a estrada. Foram mais de 600 km caminhando. No começo éramos umas 400 pessoas, quando acabou eram mais de 20 mil. O erro de Evo foi que, a cada momento que avançávamo­s a marcha, a polícia tentava impedir.

Ele disse: ‘Vocês estão atingindo minha imagem, índios marchando contra outro índio!’ Foi aí que ele interveio em uma marcha pacífica, em 24 de setembro, mandou o Exército e a polícia e houve muitos feridos. Chegamos à sede do governo em outubro de 2011. Foram dois meses e seis dias de marcha. Ficamos acampados na frente do palácio. Após três dias, Evo mandou seu ministro dizer que queria dialogar.

Aí saiu uma lei reconhecen­do que nenhuma empresa pode entrar em terra indígena sem uma autorizaçã­o da comunidade. Eles não podiam mais construir a rodovia.

Em 2012, o governo entrou nas comunidade­s com motores de barco para presentes, começou a nos dividir. Era como um suborno. Quando terminou o ano, houve uma divisão do movimento indígena porque o governo entrou no escritório da Cidob [maior ONG indígena boliviana], em Santa Cruz. Ele disse que a nova presidente indígena era uma mulher, e a colocou no cargo. Foi uma intervençã­o, preferimos nos retirar.

Em 2013, saí candidato a presidente da Cidob e ganhei com uns 70% de votos. Eles se assustaram e viram que a única forma de dar conta de mim era me prendendo. Me acusaram de ter “projeto fantasma”, mas fui solto.

Fui convidado pela França, em 2015, numa conferênci­a de mudanças climáticas. Nesse momento o governo disse que eu deveria ter me apresentad­o em outra audiência, e a Justiça determinou minha apreensão imediata, como ‘rebelde’.

Assim minha passagem de volta foi para o Peru. Foi muito duro manter-me à margem do meu povo, do meu país. Quatro anos fora. No começo deste ano [fevereiro 2019], decidi voltar. Se me querem prender, que me prendam de uma vez.

Agora sou coordenado­r de relações internacio­nais e cooperação da Coica. Vivo em Quito, e minha família ficou em Santa Cruz. Evo retomou o projeto da mesma rodovia, está no limite da terra indígena. Há uma parte que resiste, não quer, mas ele está usando presentes para alguns líderes, dando víveres, gasolina.

Não falei mais com Evo. Entendo que quando ele interveio na marcha, já não era mais o nosso presidente. Porque um irmão indígena nunca trata mal outro irmão.

“Em 2013, saí candidato a presidente da Cidob [maior ONG indígena boliviana] e ganhei com uns 70% de votos. Eles se assustaram e viram que a única forma de dar conta de mim era me prendendo

 ?? David Mercado - 27.set.19/Reuters ?? Adolfo Chávez, líder indígena
David Mercado - 27.set.19/Reuters Adolfo Chávez, líder indígena

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil