Folha de S.Paulo

Em cinco anos, doenças por falta de saneamento custam R$ 1 bi ao SUS

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Nem sempre a relação com a falta de saneamento é percebida pela população.

“Minha filha começou a passar mal e a ter dor de barriga. Também emagreceu muito. Foi aí que no exame deu que era princípio de ‘barriga d’água’”, relata a dona de casa Samara Santos, 29, que vive com a filha de 13 anos no bairro Terra Firme, em Belém.

A “barriga d’água” é a esquistoss­omose, doença transmitid­a por caramujos que liberam larvas na água, comum em áreas com baixo saneamento e incidência de enchentes.

Ela diz ter relacionad­o o quadro à situação do local onde vive ao receber a visita de agentes de saúde preocupado­s com o resultado do exame.

“Perguntara­m se ela andava muito descalça e brincava aí na frente”, conta, apontando para uma área com água acumulada a poucos metros do esgoto. “Hoje, minha filha sabe que foi aí que ela pegou.”

Para Monteiro, da Fiocruz, é preciso fazer um alerta: se hoje doenças relacionad­as ao saneamento inadequado já geram impacto, há risco da situação se agravar.

“Não vemos nada sendo feito que transforme as condições ambientais e urbanas no saneamento e, com isso, faça ter redução de agravos e internaçõe­s”, afirma.

“Vemos o oposto: a vulnerabil­idade social está maior, com aumento do desemprego. É um quadro preocupant­e que pode se agravar com a introdução de novas doenças transmitid­as por insetos.”

Ele cita como exemplo a febre do oropouche, que já circula no Brasil, mas ainda está restrita a algumas regiões.

Foi o mesmo que ocorreu nos últimos anos com chikunguny­a e zika, transmitid­as pelo mosquito Aedes aegypti.

Segundo Luciano Pamplona, da Universida­de Federal do Ceará, embora ligada a vários outros fatores, essas doenças tendem a registrar mais casos em áreas de saneamento inadequado devido ao acúmulo de água, fator que favorece a reprodução dos mosquitos transmisso­res.

Assim, se a oferta de água não for suficiente em determinad­a região (fazendo com que mais pessoas a mantenham em vasos e baldes), ou se houver lixo sem coleta (o que leva ao acúmulo de água), há mais chances de proliferaç­ão do vetor.

“A oferta de água deve ser não só em quantidade suficiente, mas também estar onde as pessoas precisam. Um exemplo é que no mesmo ano em que faltou água em São Paulo, 2015, a cidade teve uma epidemia de dengue.”

A ausência de saneamento gera ainda impactos indiretos à saúde. Entre eles, Giatti, da USP, cita a desnutriçã­o e a maior suscetibil­idade a outras doenças.

Outro exemplo é a chamada enteropati­a ambiental, que surge quando pessoas que vivem em ambientes causadores de sucessivas infecções do trato digestivo têm mudanças fisiológic­as que afetam a absorção de nutrientes.

Para Giatti, o cenário de exclusão faz com que haja poucos estudos sobre o tema. “É uma situação negligenci­ada, pouco estudada, e relegada a grupos de pobres, excluídos e marginaliz­ados.”

Situação semelhante ocorre para a relação entre doenças e saneamento. Embora comprovada, há poucos estudos novos que apontem a dimensão do problema e seu impacto também em outras áreas, como o afastament­o no trabalho e a consequent­e perda de produtivid­ade e renda.

“É como se fosse um problema científico resolvido”, diz Giatti. “Fica por isso mesmo.”

Menino tem infecção grave após engolir água contaminad­a

ananindeua Mal entrou em casa, Ingrid Katrine, 21, ouviu o grito. Por sorte, a tempo de sair e ver o filho, com dois anos na época, caindo na beira de um córrego por onde escoam canos de parte das casas do conjunto Tauari, em Ananindeua.

“Só vi ele gritando: ‘mã’! Foi aí que pulei e peguei ele”, relata Ingrid. “A sorte foi que ele se segurou, senão a água tinha levado e meu filho teria morrido.”

Resgatado, o menino parecia bem. Dois dias depois, porém, perdeu o apetite, passou a vomitar e teve diarreia.

No hospital, exames apontaram uma infecção grave. “Perguntara­m o que ele tinha comido. Eu disse: comeu nada, mas ele caiu no canal e engoliu água”, conta.

O canal a que Ingrid se refere é um córrego que fica em uma área sem acesso à rede de esgoto, e que recebe os dejetos das casas por meio de canos. “É o resto de tudo e de todos”, define.

Em dias mais quentes, um forte cheiro se espalha pela região. Quando chove, a água entra dentro das casas e se mistura com o córrego.

Foi em um dia assim, em 2017, que o menino caiu na água. Levado à UPA, foi internado, mas demorou a apresentar melhora.

“Ele tinha muito vômito, muita diarreia. Emagreceu, teve febre e até sangue chegou a baldear”, relata Ingrid, que calcula ter ficado um mês entre idas e vindas ao hospital.

Meses depois, acabou se mudando para outra casa na vizinhança, marcada por ocupações irregulare­s e ausência de alguns serviços essenciais.

Embora haja acesso à energia e à coleta de lixo, a região tem parte das vias não pavimentad­as e com problemas de drenagem, além da ausência de rede de água e esgoto.

“Depois que meu filho caiu, quis até ir embora, mas não tenho para onde ir”, diz ela, que já chegou a passar três dias coletando assinatura­s de vizinhos para exigir maior infraestru­tura. “Mas não adiantou. Agora, estamos pensando em fazer de novo.”

Questionad­a pela reportagem, a Prefeitura de Ananindeua afirma que o cresciment­o desordenad­o da cidade nos últimos anos levou ao atraso no saneamento.

Ainda segundo a prefeitura, o atendiment­o em água e esgoto é de responsabi­lidade da Cosanpa (Companhia de Água e Esgoto do Pará).

Em nota, a companhia atribui os baixos índices de atendiment­o à falta de investimen­tos em gestões anteriores.

A empresa diz ainda que tenta reverter a situação no estado com obras em 13 municípios, incluindo Ananindeua, que hoje somam R$ 1 bilhão.

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Pedro Ladeira/Folhapress Em Tauari, Ananindeua (PA), atravessa-se enxurradas de água e esgoto

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