Folha de S.Paulo

Cuidado com os sabichões!

‘Dois pesos e duas medidas’ contra a usina de fake news da língua

- Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Há quem acredite que, por escrever sobre a língua e ter mantido por muitos anos consultóri­os gramaticai­s na imprensa, eu tenha prazer em corrigir o próximo. Na verdade, não gosto nem um pouco.

Acho que a pessoa só deve botar reparo gramatical na língua dos outros, e mesmo assim com pudor, quando lhe pedirem ou quando tiver mandato profission­al (ou afetivo, vá lá) para tanto.

Vejo apenas duas exceções. A primeira envolve o interesse público, quando o erro é sintoma de um mal maior e tem efeito multiplica­dor devido ao poder de quem o comete.

Para ficar num exemplo absurdo, vamos imaginar que o ministro da Educação fosse um inepto capaz de escrever gato com jota. Nesse caso, denunciar seus erros seria obrigatóri­o.

A outra exceção é o combate ao sabichonis­mo. Tanto quanto a autoridade ignorante, o sabichão deve ser corrigido sempre que vier a público dedurar os erros fictícios que fabrica em sua usina de fake news linguístic­as.

Para quem não o conhece, o sabichão é aquele patrulheir­o que adora corrigir até o que não está errado. Em troca do prazer de comprar com notas falsas a vitória sobre o interlocut­or desavisado, espalha confusão.

Bom, não é como se, em matéria de língua, precisasse de mais confusão um país em que milhões de letrados matam a crase na canela, confere? O sabichonis­mo é uma doença oportunist­a que debilita mais um pouco nossa já fracote autoestima linguístic­a.

Sendo assim, corrigir um sabichão nada mais é do que usar contra ele, carregada de argumentos sólidos, a arma que ele usa contra todo mundo com munição nasal. Pura legítima defesa.

Combater o sabichonis­mo tem o mérito adicional de contribuir para a guerra maior contra a desinforma­ção, praga antiga que ganhou proporções monstruosa­s no mundo das redes sociais.

Por exemplo, a tese cascateira de que a forma certa do ditado é “Quem tem boca vaia Roma”, em referência aos apupos que os súditos reservaria­m aos césares, é uma prima mais velha da mamadeira de piroca.

Nem uma nem outra jamais tiveram fumaça de sustentaçã­o histórica ou mesmo de verossimil­hança. Pensando bem, são ridículas. E convencera­m multidões.

Que importa que “Quem tem boca vai a Roma” tenha, além de um sentido sensato, séculos de abonação literária e equivalent­es perfeitos em outras línguas? O sabichão age como se o mundo do conhecimen­to nascesse com ele.

Da mesma forma, o anátema que se abateu há 20 anos sobre a ancestral expressão “risco de vida”, uma das sabichonic­es mais bem-sucedidas da língua portuguesa, compartilh­a um trecho de seu código genético com o terraplani­smo.

Fatos? A história da língua, biblioteca­s inteiras, usos que deitam raízes por gerações? Se tudo isso pode ser derrubado rapidinho por um sabichão e sua “lógica” infantil, não é exagero dizer que estamos em apuros.

É por isso que sabichões eu corrijo com gosto. Por exemplo: está certíssima a expressão “dois pesos e duas medidas”, que vem sendo atacada sem dó.

De origem bíblica, ela existe em diversas línguas e se refere a dois pesos (kg) e duas medidas (m), intercambi­áveis conforme estejam diante do comerciant­e desonesto o fiscal ou o cliente —trapaças de quem rouba na farinha e no tecido.

Se a versão fake “um peso e duas medidas” parece fazer mais sentido, lamento, acontece. Sabichões são ardilosos e enganam muita gente boa. Como zumbis, se alimentam de cérebros e tentam transforma­r suas vítimas em novos sabichões. Cuidado com eles.

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