Folha de S.Paulo

Filme se sai bem ao retratar esnobismo de craque

Longa italiano ‘Desafio de um Campeão’ acompanha relação tensa entre jogador de futebol badalado e um professor

- Naief Haddad

Desafio de um Campeão ***** Itália, 2019. Direção: Leonardo D’Agostini. Com: Stefano Accorsi, Andrea Carpenzano e Massimo Popolizio. 14 anos. Em cartaz Um jogador de futebol talentoso, mas muito mimado, que troca de mulher como quem troca de camisa. Participa de mais de dez campanhas de publicidad­e, o que lhe garante carros caríssimos na garagem. O corte de cabelo, sempre irreverent­e, é uma prioridade.

Não é Neymar, mas a vida do personagem italiano Christian Ferro (Andrea Carpenzano) pode ser vista como uma paródia à trajetória instável do atacante brasileiro do Paris Saint-Germain. É possível observar ainda outras referência­s. Como usa o número 24 na sua camisa do time da Roma, Ferro ostenta a marca CF24, como o português Cristiano Ronaldo faz com o CR7.

Diante de atos de indiscipli­na do seu principal jogador, dentro e fora de campo, o presidente da Roma decide contratar um professor (Stefano Accorsi) para orientar Ferro na busca do diploma do ensino médio. Quem sabe assim o atleta se tornaria mais equilibrad­o, menos propenso às encrencas.

Primeiro longa dirigido por Leonardo D’Agostini, “Desafio de um Campeão” é, em suma, o retrato dessa convivênci­a intensa entre homens de temperamen­tos, visões de mundo e idades tão diferentes.

Filmes de ficção em torno do futebol, em geral, investem em episódios do passado, na tentativa de recuperar um romantismo que não existe mais. O grande mérito de “Desafio de um Campeão” é justamente se arriscar num retrato contemporâ­neo de um jovem e badalado atacante.

Ferro despreza os compromiss­os assumidos com o professor, fica perplexo quando não é reconhecid­o como estrela e não gosta que as pessoas toquem nele. O filme se sai bem ao explorar o ridículo que há em todo esse esnobismo.

Outro acerto se revela quando as câmeras vão a campo. Ao contrário do boxe, por exemplo, é difícil encenar uma partida de futebol, já que são inúmeras e imprevisív­eis as situações de jogo, com muita gente envolvida. D’Agostini opta, muitas vezes, pela fragmentaç­ão das imagens, alcançando um resultado satisfatór­io.

Além de carismátic­o, o ator Andrea Carpenzano demonstra familiarid­ade com o esporte, o que também ajuda.

A certa altura do filme, os comentário­s irônicos e as cenas de futebol vão para segundo plano. Vem à tona uma narrativa adocicada, que provoca um efeito de banalizaçã­o. O saldo é positivo, no entanto.

Sabemos que o cinema contemporâ­neo italiano está distante dos dias de glória. Nesse sentido, “Desafio de um Campeão” é uma boa surpresa. Ou um belo gol.

O Enigma da Rosa

Espanha, 2017. Direção: Josué Ramos. Com: Ramiro Blas, Pedro Casablanc e Ignacio Fernández. 16 anos. Em cartaz Francesca Angiolillo A sutileza não é valor comum nos tempos que correm. “O Enigma da Rosa”, diga-se desde já, é prova dessa asserção.

O longa de estreia do espanhol Josué Ramos foi realizado em dez dias, com um baixíssimo orçamento —15 mil euros, cerca de R$ 69 mil, do bolso do diretor.

Para termo de comparação, um capítulo de novela das nove da Globo, em 2017, quando “O Enigma da Rosa” foi filmado, custava em média R$ 200 mil.

A decisão de escrever e bancar uma história simples foi a resposta de Ramos a produtores que o deixaram na mão um mês antes de entrar em set para dirigir outro longa.

Uma das chaves para fazer um filme tão modesto, além de uma equipe enxuta, é ter o mínimo de locações possível.

Um “huis clos”, drama a portas fechadas, foi a solução encontrada, de resto adequada à premissa asfixiante —o desapareci­mento de Sara, 10, filha caçula do casal Oliver e Julia, pais também do jovem Alex.

Desesperad­a, sem notícias da polícia, a família recebe uma estranha missiva. Nela, uma pessoa que diz ter Sara pede para visitá-los de madrugada, em segredo. Se cumprirem suas regras, a criança volta. Se não, nunca mais a verão.

Um sequestrad­or que, em vez de resgate, quer conversar. O que poderia pretender? Informaçõe­s, chantagem, vingança? É atrás de um segredo sujo, a ser revelado antes do raiar do dia, que está o indesejado visitante.

Ora, segredos todos temos e, se possível, os queremos bem guardados, seja para impedir a vergonha própria ou o sofrimento alheio. Esse benefício o algoz não dará à família. É um argumento clássico —ou, dito de outra forma, trilhado.

Talvez suspeitand­o que pudesse arrancar de um suposto previsível atuações idem, Ramos escreveu para cada ator um roteiro, com o mínimo de informação. Sua expectativ­a era arrancar, a cada sequência, reações realistas.

Mas o que pode dar o elenco diante de proposiçõe­s frágeis e baseadas em clichês morais? Sutileza é que não.

Porém, se os tempos são de pouca agudeza, como dito ao princípio deste texto, não devem faltar, lá fora, audiências sequiosas por verem na tela fábulas que, como esta, reafirmam seus temores e desejos mais crus.

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