Folha de S.Paulo

Decisão testa protagonis­mo heterodoxo do STF

Corte volta a julgar prisão após 2ª instância depois de perder apoio de parte da comunidade jurídica e da população

- Rubens Glezer Professor e coordenado­r do Supremo em Pauta da FGV Direito SP

O controle do tempo de julgamento é a porção mais necessaria­mente política da atuação judicial. No caso de cortes constituci­onais, como o STF (Supremo Tribunal Federal), a sabedoria prática para decidir o que será julgado e o que será deixado de lado é crucial.

O manejo adequado desse poder permite um equilíbrio entre a politizaçã­o e a irrelevânc­ia do tribunal. Já os erros de cálculo podem ser fatais. Alguns casos impõem dificuldad­es especiais em relação ao tempo de julgamento, como é o caso da constituci­onalidade da prisão após a condenação em segunda instância.

No alvorecer da Nova República seria difícil imaginar que os casos penais seriam os responsáve­is por gerar dificuldad­es políticas para o Supremo. Era de se imaginar que a intervençã­o nas políticas públicas e a garantia de direitos em um país tão brutalment­e desigual carregaria­m esses desafios.

Porém foi uma dimensão muito específica da desigualda­de que se tornou complexa para o STF lidar: um sistema de Justiça que não dá garantias mínimas aos mais vulnerávei­s, enquanto permite largas escalas de impunidade aos mais poderosos.

A perversida­de seletiva não era apenas um problema do restante do Judiciário, mas cada vez mais do próprio Supremo. Em especial porque cabe ao STF lidar com a situação final dos poderosos, seja julgando seus últimos recursos seja julgando autoridade­s com foro privilegia­do.

É verdade que coube ao Supremo lidar também com a parcela de como o sistema trata os mais vulnerávei­s, declarando a situação permanente­mente inconstitu­cional dos presídios e determinan­do a soltura coletiva de mulheres grávidas e de mães de crianças de até 12 anos (conforme recomenda a lei).

De todo modo, o problema continua grave. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo (cerca de 800 mil pessoas), enquanto a percepção de impunidade e corrupção se mantém em alta.

A partir de 2012, o STF passa a ganhar atenção do debate público com o julgamento do mensalão, na qualidade de um ator central para lidar com a impunidade dos poderosos.

Porém, ao ser objeto do debate público, passou-se mais intensamen­te a debater se o Supremo fazia realmente sua parte no que dizia respeito ao foro privilegia­do e ao julgamento de recursos criminais. Essa crítica ganhou cada vez mais força quando a performanc­e do tribunal passou a ser comparada com o modo rápido com o qual a Operação Lava Jato lidava com os seus julgamento­s.

Nesse contexto, o debate público começa a tomar duas direções. Em primeiro lugar, o clamor pelo fim da impunidade não pede por uma equalizaçã­o da responsabi­lidade penal dentro de parâmetros legais, mas de uma extensão da realidade dos vulnerávei­s para os poderosos. Em segundo lugar, a responsabi­lidade sobre as distorções do sistema de Justiça passa a ser atribuída principalm­ente ao STF.

Dentre os diferentes efeitos dessa conformaçã­o do debate público, o Poder Legislativ­o para de ser cobrado como agente responsáve­l por estruturar as mudanças no sistema de Justiça.

Some do debate público o papel do Congresso por não ter aprovado a proposta de emenda à Constituiç­ão (PEC) que estabeleci­a a execução de decisões judiciais a partir da segunda instância, apresentad­a pelo então presidente do STF, Cezar Peluso, em 2011.

Da mesma forma, ignorase que o Congresso não levou adiante um debate robusto sobre reformulaç­ão do foro privilegia­do. Deixa-se de lado que o Congresso não leva adiante projetos de lei que modificam as regras do Código de Processo Penal que hoje proíbem a prisão em segunda instância ou mesmo as que determinam quais casos devem ir para a Justiça Federal e quais vão para a Justiça Eleitoral, em caso de conexão.

Na conjunção desses elementos, o Supremo Tribunal Federal assume para si a função de protagonis­ta do problema da impunidade e começa a tomar uma série de decisões heterodoxa­s e surpreende­ntes de interferên­cia no mundo político a partir de relações penais.

Prende senador com condições não escritas na Constituiç­ão, cria a possibilid­ade de suspender mandato parlamenta­r, cria a possibilid­ade de barrar a nomeação de ministro de Estado, cria condições para a linha sucessória da Presidênci­a e autoriza a prisão após condenação em segunda instância.

Com o passar do tempo, esse protagonis­mo cheio de heterodoxi­as custou ao Supremo Tribunal Federal a progressiv­a perda de apoio por parte da comunidade jurídica, da população em geral e o conflito entre os próprios ministros. Agora resta ao STF administra­r sua própria herança.

Ao julgar novamente a prisão em segunda instância sem que tenha ocorrido nenhuma mudança legislativ­a ou juridicame­nte relevante desde o último julgamento, aparenteme­nte só há três resultados disponívei­s ao tribunal: reafirmar seu posicionam­ento heterodoxo e instável, afirmar que a conduta anterior estava equivocada ou postergar a decisão para evitar o custo de tomá-la (como tem sido feito até agora).

Seja qual for o resultado, deverá ser disputado e decisivo para definir o papel do STF na política brasileira.

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