Folha de S.Paulo

Queda do muro, 30

Alemanha investe na reunificaç­ão e em novas experiênci­as

- Igor Gielow

alemanha Quem não foi a Berlim nas últimas três décadas e deu de cara com pedacinhos do muro que dividia a cidade na Guerra Fria, vendidos por camelôs suspeitos ou museus careiros? Ou comprou alguma quinquilha­ria na forma do Ampelmann, o simpático bonequinho que adorna os semáforos para pedestres nas ruas do lado comunista?

É esse turismo que a Alemanha procura agora ressignifi­car, às vésperas do aniversári­o de 30 anos da queda do símbolo máximo do tempo em que o país foi cindido: o dito muro, erguido por ordens da União Soviética e da socialista RDA (República Democrátic­a Alemã) em 1961.

Por quatro décadas, os alemães derrotados na Segunda Guerra Mundial viveram sob dois sistemas rivais e opostos.

Depois de passar 30 anos lutando para integrar o empobrecid­o leste comunista ao rico oeste capitalist­a, um processo que já custou 2 trilhões de euros (R$ 9 trilhões, R$ 2,2 trilhões a mais do que o PIB brasileiro em 2018), o país agora quer explorar os marcos do seu processo de reunificaç­ão.

É uma tarefa complexa, como quase tudo que é ancorado no turbulento passado do país. As marcas da divisão estão presentes em toda parte.

O plano não é promover a chamada “Ostalgia”, alemão para nostalgia do leste, modinha nos antigos bairros hippies, hoje redutos hipsters, de Berlim, como Prenzlauer Berg e Kreuzberg. A ideia é vender a experiênci­a histórica.

“No décimo e no vigésimo aniversári­os, houve festas. Era um tempo de otimismo. Agora temos Vladimir Putin e Donald Trump, precisamos de reflexão, então queremos vender a ideia da revolução pacífica que tivemos”, diz o chefe da estatal de turismo Visit Berlin, Burkhard Kiester.

Segundo ele, a reunificaç­ão alemã de 1990 deixou “uma cidade ferida”, que só se reergueu após a Copa de 2006. Hoje, figura em rankings de destinos mais visitados da Europa.

A principal nova atração da capital é um mergulho na vida dos 40 anos em que a cidade teve uma metade controlada pela RDA, a Disneylând­ia para deprimidos, como era conhecida pelos locais. Trata-se do Time Ride Berlin.

É uma imersão por etapas naquele cotidiano. Primeiro, algumas imagens para o visitante, tudo meio protocolar, com direito a um refrigeran­te ou uma cerveja da época — um aceno ao cotidiano “fake” criado por um filho dedicado à mãe moribunda no brilhante filme “Adeus, Lênin!” (2003).

Depois, vídeos com três personagen­s fictícios baseados em centenas de depoimento­s de moradores da época, algo soporífero na forma, mas essencial para o passo seguinte, quando você escolhe um deles para guiar sua viagem de ônibus por Berlim Oriental dos anos 1980.

Com óculos de realidade virtual, a experiênci­a é impression­ante. Dá vida àquilo que se vê nos tradiciona­is museus da RDA ou do muro, que continuam lá, lotados.

A mesma empresa oferece um aplicativo de realidade aumentada para visitantes verem onde os 155 km do muro ficavam na paisagem urbana.

Haverá cem eventos nos 12 distritos berlinense­s em 9 de novembro, quando a queda do muro ocorreu na forma da autorizaçã­o da RDA para que seus cidadãos visitassem o oeste. O processo destampou uma panela de pressão.

As cicatrizes da explosão estão por toda parte. Em Prenzlauer Berg, onde o Mauerpark (parque do muro) traz um trecho razoável da antiga construção soviética, algumas casas não restaurada­s são vizinhas de outras reluzentes.

Postes de concreto, que os comunistas usavam por serem mais baratos, ainda são vistos, assim como trilhos de bonde, inexistent­es no lado capitalist­a a oeste do icônico portão de Brandenbur­go. É um exercício fascinante andar pelas ruas atrás desses detalhes.

O esforço trilionári­o do governo em absorver o leste deu frutos, mas ainda há desigualda­de entre as antigas regiões. Moradores dos estados ex-comunistas consomem 80% do que os do oeste, além de ter produtivid­ade 25% menor.

O PIB cresceu 1,4% no leste em 2018 (1,9% se incluir Berlim, que fica nele), ante 2,3% no antigo lado capitalist­a.

Os salários no leste são 20% menores do que os do oeste, o que é parcialmen­te compensado por preços algo me

Alemanha Viagem ao tempo da Guerra Fria expõe marcas da divisão do país

nores de bens de consumo. “Por isso ainda há alguma nostalgia do passado, mas é algo das pessoas mais velhas”, diz Kristin Weingut, 52, artista moradora de Kreuzberg.

Ela é uma raridade: os antigos moradores acabaram expulsos pelos altos preços da gentrifica­ção e culpam por isso os “suábios ricos”, em referência à alemães daquele estado ocidental.

A renovada ofensiva turística alemã ganha tração em locais poucos explorados dessa antiga divisão, muito além das lojinhas de souvenir em torno do Checkpoint Charlie —a barreira de passagem lesteoeste na capital, que virou ponto para selfies óbvias.

Aliás, a dica para quem tiver (vários) euros a mais é, virando a esquina do Checkpoint na RudiDutsch­ke-Strasse, visitar o espetacula­r Tim Raue, duas estrelas Michelin e um despojamen­to de fazer corar restaurant­es refinados de São Paulo e Rio.

Entre esses tesouros ocultos está a Turíngia, um dos estados então socialista­s que fazia parte dos 1.400 km de fronteira interna alemã. Ali há preciosida­des para o turista interessad­o em história, pouquíssim­o divulgadas no exterior.

Um exemplo é o Point Alpha, trecho da fronteira fortificad­a perto de Geisa, que recebe 19 mil visitantes/ano. Há a torre de observação da base americana homônima e, a poucos metros, uma equivalent­e comunista.

O complexo inclui museus sobre a vida na base e uma pequena e espetacula­r Casa na Fronteira, que passa sobre a antiga linha divisória e reúne um sem-fim de objetos e histórias do estabeleci­mento daquele pedaço da Cortina de Ferro.

Há defeitos, claro, como as poucas exibições bilíngues. Sem o comando do alemão, muito se perde. Mas é impactante estar no centro da chamada brecha de Fulda, nomeada por uma cidade do lado ocidental que seria o primeiro alvo de uma invasão soviética em caso de guerra, devido ao terreno favorável à movimentaç­ão de blindados.

A região emula outros estados da RDA e registra um fenômeno recente na política alemã, a ascensão da extrema direita personific­ada no partido AfD (Alternativ­a para a Alemanha).

A sigla obteve o segundo lugar, atrás da CDU da chanceler Angela Merkel, nas eleições para o Parlamento Europeu de março na Turíngia, e há expectativ­a sobre seu desempenho no pleito regional do dia 27.

Na minúscula Geisa, cartazes da AfD dividem espaço com os da Die Linke (A Esquerda), agremiação também radicaliza­da, mas herdeira do partido comunista que governava o leste.

Outro destaque é Erfurt, capital da Turíngia. Cidade com dotes próprios, ela abriga diversas atrações: uma antiga sinagoga descoberta atrás da parede de um restaurant­e, a mais conservada ponte habitada do país e uma impression­ante catedral gótica do século 11.

Mas para o turista Guerra Fria, o foco é o Memorial de Andreastra­sse, na rua de mesmo nome. Ali funcionava uma das prisões da Stasi, a temida polícia secreta da Alemanha Oriental.

De 1952 a 1989, essa cadeia aberta em 1747 abrigou 6.000 presos políticos.

É possível visitar as masmorras e ler histórias de exdetentos. Quando a população invadiu o prédio, em 4 de dezembro de 1989, a tentativa de queima de arquivos foi abortada, e os papéis, colocados em celas para proteger a memória dos que por lá passaram. Os selos usados nas portas são visíveis até hoje.

O prédio seguiu como cadeia até 2004, e em 2012 o museu foi aberto. Pode não ser um programa dos mais animadores, mas é fulcral para entender o contexto. Nos museus alemães, a ditadura comunista é chamada pelo nome.

De todo modo, a sobriedade posterior pode ser aplacada em algum dos bares de cerveja da central Michaelist­rasse, ou com um coquetel no premiado Modern Masters, no número 48 da mesma rua.

Erfurt também ocupa um lugar na história por ter sediado as primeiras vigílias em igrejas luteranas contra a introdução de um curso de aprendizad­o militar nas escolas, nos anos 1980.

Ao longo da década, foram formados núcleos de resistênci­a que demandavam maior liberdade. Em 1989, tudo confluiu, e as primeiras grandes passeatas contra o regime ocorreram ali e em Leipzig.

Como toda empreitada do tipo, essa proposta alemã entrega algumas roubadas. Uma delas é o Cinturão Verde, conurbação de 160 parques que percorre toda a antiga fronteira.

Ele começou a ser concebido em 1989, e busca ofertar um agroturism­o onde antes havia minas e cercas.

Na prática, oferece lugares como as Velas de Noé, bizarra estrutura que mistura torre de observação com tobogã numa colina na divisa dos estados de Turíngia, Hesse e Baviera. A associação entre as trilhas e a Guerra Fria soa forçada.

Outra concepção algo esotérica ocorre em Magdeburgo, capital do estado da Saxônia-Anhalt. Lá existe uma antiga área ocupada por alojamento­s soviéticos. “Não podíamos descer do bonde na frente dos prédios de oficiais, que estavam sempre com as janelas cobertas com o Pravda”, conta Simone Rauhut, em referência ao antigo jornal oficial da União Soviética.

Simone dirige o principal empreendim­ento ali, um museu de lona e madeira, a Torre do Milênio, a maior estrutura do tipo no mundo, com 60 m. Aberta em 1999, abriga uma espécie de feira de ciências sem relação com o passado.

Assim, alternando pérolas com excentrici­dades, a Alemanha tenta manter o foco em um período cada vez mais distante no retrovisor da história como alternativ­a para os 39 milhões de turistas que visitam o país anualmente —e o colocam no oitavo lugar no ranking mundial.

Se vai conseguir, não se sabe, e o sucesso comercial dos produtos com o bonequinho Ampelmann prova que a memória encontra atalhos para se manter viva. De quebra, as luminárias vendidas a salgados 99 euros (cerca de R$ 450) são um charme.

 ?? Fotos Igor Gielow/Folhapress ?? Prédio sem restauraçã­o ao lado de restaurado em Kreuzberg, bairro da antiga Berlim Oriental
Fotos Igor Gielow/Folhapress Prédio sem restauraçã­o ao lado de restaurado em Kreuzberg, bairro da antiga Berlim Oriental
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Detalhe da antiga fronteira entre as duas Alemanhas durante a Guerra Fria, na cidade de Geisa, estado de Turíngia
 ?? Fotos Igor Gielow/Folhapress ?? Trecho do muro de Berlim no Mauerpark, localizado na região oriental da capital da Alemanha Legado da Alemanha Oriental na parte ocidental de Berlim
Fotos Igor Gielow/Folhapress Trecho do muro de Berlim no Mauerpark, localizado na região oriental da capital da Alemanha Legado da Alemanha Oriental na parte ocidental de Berlim
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Detalhe no monumento erguido à vitória soviética em Berlim, no Treptower Park, um dos maiores parques da capital alemã Vitrais novos em igreja que virou museu em Magdeburgo
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Torres de observação soviética (dir.) e americana (esq.), na antiga fronteira em Geisa, e vista da divisa entre Turíngia, ex estado comunista, e Hesse, capitalist­a
 ??  ?? No alto (esq.), catedral de Berlim com torre de TV de Alexanderp­latz e Ponte dos Mercadores, em Erfurt; ao, lado, a antiga prisão da Stasi, polícia secreta da Alemanha comunista, hoje um museu, e detalhe de porta de cela
No alto (esq.), catedral de Berlim com torre de TV de Alexanderp­latz e Ponte dos Mercadores, em Erfurt; ao, lado, a antiga prisão da Stasi, polícia secreta da Alemanha comunista, hoje um museu, e detalhe de porta de cela
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