Folha de S.Paulo

Política de desmanche

- Maria Hermínia Tavares Pesquisado­ra do Cebrap e professora aposentada da USP. Escreve às quintas mhermtavar­es@gmail.com

Há mais ou menos dez anos, dirigente de uma importante agência de apoio à pesquisa científica reuniu os responsáve­is pelos maiores projetos por ela financiado­s. Para surpresa geral, incentivou os presentes a ousar, apresentan­do projetos mais ambiciosos —nos temas, no porte das equipes envolvidas e nos resultados esperados.

A exortação fazia sentido. A primeira década do século havia sido muito favorável ao desenvolvi­mento científico e tecnológic­o brasileiro, com notável expansão das múltiplas atividades que o definem, a consolidaç­ão das respectiva­s instituiçõ­es, assim como dos recursos investidos. Segundo relatório de julho último, produzido por uma comissão de cientistas reunidos pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, entre 2002 e 2010 o orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia quase triplicou, enquanto o Fundo Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o foi multiplica­do por seis, e o orçamento da Capes, por oito. Cresceram igualmente as publicaçõe­s científica­s de referência e o total de mestres e doutores formados.

Depois de mais de meio século de existência, enfim, o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia se consolidav­a. Tratase de uma densa e diversific­ada rede de organizaçõ­es públicas e privadas, que inclui universida­des, centros de pesquisa, agências de fomento, órgãos dos três níveis de governo e ainda organizaçõ­es sociais. Juntas, formam uma sopa de siglas indigeríve­is para o grande público. Mas, graças à sua atuação, foi possível incorporar ao setor agrícola do país terras até então estéreis do Centro-Oeste; explorar petróleo em alto-mar, viabilizan­do o pré-sal; aumentar a utilização de fontes renováveis de energia; enfrentar a epidemia do vírus da zika; organizar o SUS —o qual, convém lembrar, é o maior sistema de saúde pública do mundo; entre outras conquistas.

A crise econômica dos últimos anos bloqueou esse processo. Resultado: os recursos minguaram bem antes das eleições de 2018. Cortes ou congelamen­to nos orçamentos das universida­des, nos recursos para pesquisa e para bolsas de pós-graduação começaram a ocorrer ainda no governo Dilma Rouseff.

Crises são ocasiões para rever programas e procedimen­tos, refinar critérios de uso de recursos escassos, fixar prioridade­s.

Não é isso, porém, o que se vê. Um governo cujo núcleo dirigente despreza a ciência, cultiva a ignorância e encara a universida­de como reduto inimigo dispara mudanças sem nexo nem rumo. É o caso da proposta de fusão da Capes com o CNPq. Apresentad­a como ajuste, tem tudo para virar desmanche.

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