Em livro, FHC diz ter sido ‘goleiro’ de críticas contra Lula
Em diários, ex-presidente conta que se viu obrigado a defender adversário junto à comunidade internacional
Em relato presente no último volume dos “Diários da Presidência”, Fernando Henrique Cardoso diz ter se sentido, no final de 2002, forçado a ser uma espécie de goleiro do ex-adversário contra a desconfiança de muitos, sobretudo estrangeiros.
Um “goalkeeper”, defendendo Lula das bolas que a comunidade internacional tentava lançar por baixo das suas pernas. Era assim que o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) se sentia ao final de seu governo, em 2002, forçado a ser um goleiro para o ex-adversário contra a desconfiança de muitos.
O relato consta do quarto e último volume dos “Diários da Presidência”, que será lançado em 25 de outubro.
“Eu, como um goalkeeper, tratando de defender as bolas que querem passar pelas pernas do Lula. Eu o estou defendendo o tempo todo, é do meu interesse que haja calma no Brasil [...] O Lula não é nenhum ferrabrás”, diz FHC, com outro termo datado (algo como valentão, inconsequente).
O volume cobre o biênio final de seu mandato (2001-02) e, a exemplo dos três anteriores, registra observações feita a quente pelo então presidente, geralmente gravadas ao final de dias extenuantes.
O tema principal é a campanha que elegeu Lula, seguida por uma transição vista na época como exemplar, mas que nada teve de tranquila.
O pano de fundo econômico, com dólar disparando, desconfiança internacional sobre o novo governo de esquerda e o ainda fresco acordo de US$ 30 bilhões assinado com o FMI, tornava tudo nebuloso.
FHC se converteu em defensor de Lula depois de meses tendo os mesmos temores que depois buscou dissipar.
“Acho que a crise vem pela figura do Lula. Claro, eu vou atuar como presidente, vou fazer o possível para acalmar tudo isso [...], mas não podemos tapar o sol com a peneira.”
Para o tucano, Lula se mostrava um “despreparado”, mas ainda pior era o também candidato Ciro Gomes (PPS), um “destrambelhado”. “Meu Deus do Céu, quem diria isso, a candidatura do PT dando mais segurança quanto ao futuro [do que a do Ciro]”, exaspera-se.
Já José Serra (PSDB), embora contasse com sua torcida e fosse considerado o mais apto a exercer a Presidência, ainda precisava se converter totalmente ao novo mundo da economia internacionalizada.
A metáfora escolhida foi científica. “Acho que a visão dele [Serra] é a de quem ainda não fez totalmente a revolução copernicana ou, se quiserem, para falar em Galileu, ele ainda não falou ‘Eppur si muove.’”
A volatilidade econômica criava uma situação difícil para os tucanos. Parte da tensão era causada por Lula, mas era o petista que ganhava discurso fácil com a deterioração.
Os meses anteriores ao fechamento do acordo com o FMI foram de embate. Os petistas gritavam “Fora já, fora já daqui, o FHC e o FMI”, mas o tucano é quem tinha de bater de frente com exigências vistas como impraticáveis.
“O Fundo quer aumentar o esforço fiscal, que já está a 3,75% do PIB. Querem ir para 4,5%, é inviável”, reclama.
Num desabafo, FHC chega a flertar com medidas heterodoxas que à época sua equipe econômica negava de forma veemente. Entre elas, a que despertava mais temores no mercado, a centralização do câmbio (controle do fluxo de dólares pelo Banco Central).
O livro traz uma revelação importante: foi por sugestão do diretor-geral do FMI, o alemão Horst Köhler, que FHC convidou os principais candidatos à Presidência para conversar sobre o acordo. Ele, a princípio, resistiu. “Vai ser visto como uma espécie de uso do cargo antes da vitória. Não acho prudente”, afirmou.
Mas FHC cedeu e, em 19 de agosto, recebeu os quatro principais candidatos, um de cada vez, num momento memorável da história das campanhas eleitorais brasileiras.
Como relata o ex-presidente, Ciro chegou “tenso, muito tenso, com as mãos geladas e suadas”. Lula foi “ultrassimpático”. Anthony Garotinho foi um desastre, quase agressivo: “Entrou assobiando, com pouca educação”. Com Serra, ele tomou só um lanche. “Na chegada, todo mundo se queixou que ele [Serra] não cumprimentou os funcionários.”
A boa relação de FHC e Lula se estendeu para uma transição amistosa, em que o petista chegou a revelar nomes de seu ministério em primeira mão para o tucano.
FHC ficou pouco impressionado com a equipe do sucessor, com exceção de nomes como Antônio Palocci (Fazenda). Achou o time “adequado para os anos 1970, pouco apto a enfrentar os problemas e a realidade de hoje”, mas guardou para si a avaliação.
Não foi só a situação interna que testou a fleuma de FHC durante seus últimos anos no poder. O volume cobre os atentados de 11 de setembro de 2001 e mostra o receio do então presidente de que as regras de convivência internacional fossem reescritas pelos EUA, o que de fato aconteceu.
“É possível que eles queiram refazer a agenda do mundo, mas não para o lado que eu desejo, que é, como eu disse ao [George] Bush, tentar abrir um espaço de negociação mais amplo no mundo. Estão aumentando a ação unilateral”, registra, três dias após os ataques.
Da mesma forma, mantinha-se tenso um ano depois, quando Bush começou a dar sinais de uma invasão ao Iraque, o que ocorreria em 2003.
“O panorama mundial é ruim, é pesado, é difícil”, afirma, em setembro de 2002.
Curiosa, aos olhos de hoje, é a relação com o venezuelano Hugo Chávez (morto em 2013). “O Hugo é amável, caloroso comigo [...] Ele, claro, está feliz com a vitória do Lula. Mas tem sido comigo mais do que correto, amigo”, diz.
O Brasil está escolhendo um caminho na contramão do momento atual da história. Vejamos o que vai acontecer
FHC sobre a eleição de 2002
É possível que eles queiram refazer a agenda do mundo, mas não para o lado que eu desejo
sobre as reações dos EUA ao 11 de setembro
O Hugo [Chávez] é amável, caloroso comigo. Está feliz com a vitória do Lula, mas tem sido comigo mais do que correto
sobre o presidente venezuelano