Folha de S.Paulo

Mães que perdem bebês são impedidas de doar leite na rede de bancos

Norma da Anvisa é usada para recusa, mas agência nega haver proibição

- Excepciona­lmente, a coluna não é publicada nesta sexta (18) Cláudia Collucci Tati Bernardi

Foi no enterro da filha Marcella que os seios da professora Flávia Cunha, 40, de Campinas (SP), começaram a jorrar leite. A menina havia sofrido falta de oxigenação no cérebro e morrido 24 horas após nascer.

No dia seguinte, com os mamas cheias e doloridas, Flávia foi até a maternidad­e para aprender a ordenhar o leite. Queria doá-lo a outros bebês.

“Por que ordenhar? Você não pode doar, o seu bebê morreu”, ela conta que ouviu da enfermeira. “Mas por que não posso? Sou saudável, não tenho nenhuma doença”, questionou. “Porque isso vai atrapalhar o processo de luto”, respondeu a profission­al.

Flávia voltou para casa e por quatro meses produziu leite, mesmo tomando dois remédios para secá-lo. “Tirava o leite com as mãos, no banho, na pia. Era horrível ver aquele leite todo escorrendo pelo ralo. Foi como viver um segundo luto. O luto do leite.”

Hoje mãe de Manuela, 3, Flávia diz que, por razões emocionais, não conseguiu amamentar a segunda filha. “Foi muito difícil, sofri estresse pós-traumático. O cheiro do leite era um gatilho para reviver todo o luto anterior.”

O drama de Flávia não é único. Mulheres que perderam seus bebês na fase final da gestação ou após o nascimento e que querem doar o leite são impedidas de fazêlo nos bancos de leite do país.

As instituiçõ­es se apoiam em norma da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de 2006, que diz que uma mãe pode fazer a doação quando está “amamentand­o ou ordenhando leite humano para o próprio filho”. Para Danielle Aparecida da Silva, coordenado­ra do centro de referência da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, a norma da Anvisa é clara. Ela diz que há razões psicológic­as e fisiológic­as que contraindi­cariam a doação por quem perdeu o bebê. “Pode prolongar o luto.”

Como não está dando o peito nem esvaziando a mama, essa mulher ficaria mais suscetível a inflamaçõe­s no seio como a mastite, que afeta mães que amamentam, causando desconfort­o e dor. Se não tratada, pode virar uma infecção.

“A mulher [que perdeu o bebê] pode ir até um banco de leite e fazer uma ordenha de alívio. Lá será orientada pelos profission­ais de saúde, inclusive por psicólogos, que não deve continuar estimuland­o [a lactação] para que não tenha esse desgaste”, explica.

A Anvisa diz que não há proibição para a doação de leite materno por mulher que perdeu filho, desde que atenda aos demais critérios —ser saudável, não fumar, não beber e não usar drogas. “A necessidad­e de ‘estar amamentand­o ou ordenhando LH [leite humano] para o próprio filho’ só se aplica às mulheres cujos filhos estejam vivos. A norma não previu a excepciona­lidade de doações de mães que se encontram em luto”.

Marina Bandeira supervisor­a administra­tiva, que perdeu o bebê após 31 semanas de gestação

Protocolos internacio­nais sobre perdas gestaciona­is ou morte de bebês, como o do sistema de saúde do Reino Unido, dão a opção à mãe enlutada de fazer a doação do leite ou iniciar a supressão orientada por profission­ais de saúde.

Segundo a psicóloga Heloísa Salgado, pesquisado­ra na área de luto perinatal, não há razões técnicas na literatura mundial que impeçam a doação de leite por mãe enlutada. “Não podemos fazer normas que restrinjam a escolha da mulher. Elas precisam acolher as opções. Pode doar o leite, suprimir com medicação, tentar diminuir a produção enfaixando [os seios] ou aguardar”, diz ela, coautora do livro “Como lidar com o luto perinatal”.

Segundo ela, a questão tem sido debatida em maternidad­es que estão adotando novos protocolos de acolhiment­o das famílias em casos de perdas. “Não atrapalha o luto. Muitas mães relatam que gostariam de ter tido essa opção. As poucas que chegam aos bancos de leite têm negado esse desejo.”

A nutricioni­sta Marina Cardoso de Oliveira, 37, de Ribeirão Preto (SP), passou pelo problema em 2017. O filho Guillermo nasceu com síndrome genética e morreu 17 dias após o parto. Nesse período, ela retirou o leite com uma maquininha e o dava ao bebê por uma sonda na UTI. “Quando ele morreu, começou a jorrar leite. Tentei doar na maternidad­e em São Paulo onde nasceu e em Ribeirão, mas não aceitaram. Foi dor imensa ver aquele desperdíci­o.”

Mesmo com medicação, o leite de Marina levou mais de um mês para secar. “Foi horrível, ficou empedrado, formou nódulos que doíam muito. Teria sido mais fácil continuar ordenhando e doando.”

Mães se queixam de não poderem optar pela doação

Em grupos de mães enlutadas, muitas mulheres se queixam da falta de escolha. Dizem que na maternidad­e receberam medicação para suprimir o leite e não tiveram a chance de optar pela doação.

“Faço doação de sangue, estou no cadastro para ser doadora de medula óssea, já avisei a família que quero doar meus órgãos após morrer. Fazia sentido para mim doar o meu leite e ajudar outras crianças”, diz a professora Perla Frangioti, 36, de Araraquara (SP) que perdeu a caçula Heloisa, em fevereiro de 2017, com 37 semanas de gestação.

Ela diz que, após a cesárea, a enfermeira enfaixou seus peitos e lhe deu comprimido para secar o leite. “Saí do hospital sem orientação sobre o que fazer, até quando ficar com a faixa, quando o leite iria secar.”

Nos dias seguintes, teve mastite e precisou de mais medicament­os. “O leite empedrou, sentia muita dor. Esse processo cutucou mais a ferida. Era a prova de que minha filha tinha morrido, de que não havia bebê para amamentar”, diz ela, mãe de Clara, 6.

A mesma dor é relatada pela farmacêuti­ca Camila Smidt, 38, que perdeu a filha Giovanna em dezembro de 2018, com 38 semanas de gestação. A necropsia não achou explicação. “A gente desmoronou. Ela não tinha doença, era normal.”

Logo após a cesárea, recebeu comprimido­s para secar o leite. “Como profission­al da saúde, sei o quanto é difícil bancos de leite materno manterem os estoques em dia.”

Marina Bandeira, 26, viveu isso ao perder seu bebê em maio de 2018, com 31 semanas de gravidez. A criança tinha síndrome genética grave (Edwards) e morreu 24 horas após nascer. “Ao saber que o bebê tinha falecido, a médica imediatame­nte me deu o comprimido para secar o leite.”

Para ela, diante da morte de um bebê, todos parecem querer acabar logo com o caso (“como se fosse possível”) e não dão à mãe possibilid­ades.

“O gesto de doação de leite materno é uma forma de amor. Faria pelo meu filho e por tantos outros bebês que vi na UTI

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Ricardo Benichio/Folhapress A nutricioni­sta Marina Cardoso de Oliveira foi impedida de doar leite materno após a morte do filho

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